+As discussões de natureza política e ideológica, ainda que tenham tom crítico e contundente, não extrapolam o direito à livre manifestação do pensamento. Assim, declarações feitas nesse contexto não podem ser confundidas com ofensa à honra.
O entendimento é do juiz Felipe de Oliveira Kersten, do 2ª Juizado Especial Criminal de Brasília. O magistrado rejeitou, assim, queixa-crime contra o professor da Universidade de Brasília (UnB) Luis Felipe Miguel. A decisão é desta sexta-feira.
O processo foi movido pelo também professor da UnB Marcelo Hermes-Lima. Em 2019, ele criou o Docentes pela Liberdade (DPL), grupo formado por professores de direita que se dizem perseguidos e desprezados por seus colegas de esquerda.
A organização afirma ter um corpo jurídico formado por “juízes, promotores, procuradores, professores e advogados”. O objetivo é defender pessoas supostamente perseguidas por docentes progressistas e “recuperar a qualidade da educação no Brasil”, rompendo “com a hegemonia de esquerda”.
Depois que o grupo foi criado, Luis Felipe Miguel publicou no Jornal GGN um artigo criticando o DPL e afirmando, em referência a Lima, que a organização é liderada por um “elitista agressivo que se tornou folclórico no campus” da UnB. Por causa da publicação e de declarações feitas em redes sociais, Miguel foi acusado de calúnia e difamação.
Ao rejeitar a queixa-crime, o juiz de Brasília afirmou que o acusado apenas fez uso de seu direito à liberdade de expressão e de manifestação. “Nitidamente, o substrato fático que ampara esta pretensão tem como panorama divergências de natureza ideológica entre as partes. Nos últimos anos, houve um recrudescimento no embate político entre pessoas e grupos que se dizem perfilados, sobretudo, à ‘esquerda’ e à ‘direita’ do espectro ideológico”, diz o magistrado.
Ainda de acordo com ele, “esses embates, em geral e independentemente de qual lado tenha sua origem, são marcados pela crítica contundente e, não raras vezes, pela dificuldade de se tolerar e conviver com visões diferentes do mundo, com repercussão cada vez maior no Poder Judiciário, que vem sendo usualmente provocado a dirimir conflitos e delimitar a área em que a liberdade de expressão e pensamento é jurídica e legitimamente exercida pelos cidadãos”.
Miguel foi defendido pelos advogados Cristiano Zanin, Valeska Martins, Maria de Lourdes Lopes e Eliakin T. Y. Pires dos Santos. “A manifestação externada pelo defendente constitui única e exclusivamente exercício legítimo da liberdade de expressão, a qual encontra plena e segura guarida em nossos tribunais contra devaneios autoritários”, afirmaram os advogados quando a queixa-crime foi movida.
O Ministério Público opinou pela rejeição da queixa, dizendo não vislumbrar “dolo de ofender, nem tampouco a existência de efetivas palavras ofensivas, havendo mais ilação por parte do ofendido”.
Impeachment
Luis Felipe Miguel foi o responsável por ministrar, em 2018, o curso “O golpe de 2016 e o futuro da democracia do Brasil”, que tratou do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ocorrido há quatro anos.
A matéria, oferecida de modo optativo pelo Instituto de Ciência Política da UnB, causou um grande furor e precisou de medidas extraordinárias para ser ministrada, como o uso de seguranças na porta da sala de aula e a proibição de gravações de áudio e de vídeo.
Docentes da UnB e de outras universidades apoiaram amplamente a iniciativa e chegaram a replicá-la em alguns Estados. Ela, no entanto, teria desagradado a um núcleo de direita encabeçado por Lima. O curso também foi criticado por José Mendonça Filho, então ministro da Educação.
A partir daí, professores de direita teriam começado a perseguir Miguel. O caso teria também ajudado a impulsionar a criação do Docentes pela Liberdade, em 2019, um ano depois de o curso ter sido ministrado.
(Por Tiago Angelo, no Conjur)