Em artigo publicado no livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, doutor e pós-doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt, professor titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza, afirma que a sentença que condenou Lula em primeira instância, caso seja mantida, representará um atentado à ordem constitucional do país:
— O que a sentença contra o ex-Presidente significa não é a derrota processual que o atinge. A sentença é a derrota final de uma ordem constitucional que se queria nova no País. Tratava-se de um Constituição moderna, dirigente, intervencionista, que oferecia os mecanismos para que o Brasil fosse menos desigual e mais generoso com seu povo. Após a Emenda Constitucional nº 95/2016, que suspendeu a Constituição existente, e com a sentença contra Lula, não há mais Constituição, e não há mais democracia com um Poder Judiciário parcial e que não corrige a si quando se faz necessário.
ABAIXO, A ÍNTEGRA DO ARTIGO:
O PREVISTO JULGAMENTO DE LULA
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
“Nunca te guies pela lei do arbítrio, que sói ter muito cabimento com os ignorantes presumidos de agudos. (..) Desde, porém, que vos deixei e subi pelas torres da ambição e da soberba, entraram-me alma adentro mil misérias, mil trabalhos e quatro mil desassossegos”.
Cervantes, Miguel de. D. Quixote de la Macha
Sem nenhuma surpresa, veio a público em 12 de julho de 2017 a decisão do juiz titular da 13ª Vara Federal no Paraná, Sérgio Moro, sobre o caso a envolver o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma condenação de nove anos e meio, mais a interdição para o exercício de qualquer cargo ou função pública pelo dobro do tempo da pena, de acordo com o inciso II, art.7º da Lei nº. 9.613/1998: “[o]bjetivamente, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o seu associado Paulo Tarciso Okamoto foram acusados pelo Ministério Público Federal da prática de crime corrupção e de lavagem de dinheiro e, na sentença, será exclusivamente examinada a procedência ou não da acusação, nem mais, nem menos”, diz o par. 56 da decisão. Eventual imparcialidade do julgador, como constantemente alegada pela defesa do Réu, constituir-se-ia em “mero diversionismo”, de acordo com o par. 57 (e ainda os par. 65, 138, 148) do texto da sentença. No dia 16 de julho, a defesa do ex-Presidente deu publicidade ao oferecimento de embargos de declaração. No dia 19 de julho tornou-se público o/a “despacho/decisão” do Juízo da 13ª Vara Federal no Paraná com a improcedência destes embargos.
Porque se pode afirmar que a condenação não trouxe nenhuma surpresa? Há consequências negativas para o que ainda resta da democracia brasileira com a procedência de tal afirmação? A sentença poderia absolutória? Enfrentarei brevemente estas perguntas.
O juiz Sérgio Moro já havia escrito, desde 2004, qual seria um dos principais fundamentos da validade de suas decisões, especialmente quando se trata de punição em desfavor de “poderosos” da economia e da política. No seu escrito “Considerações sobre a operação mani pulite”, Sérgio Moro não deixa dúvidas: a opinião pública deverá ser envolvida de forma decisiva em casos de processos de políticos proeminentes:
Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial. (…) Talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial. Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados. Se isso não ocorrer, dificilmente encontrará êxito.
Não parece problemático que se conclua sobre a percepção do Autor: a força da aplicação do direito, mesmo numa democracia, depende mais da opinião pública do que maturidade das instituições judiciárias. Aquela é que “definirá” esta. Não terei espaço para explicitar a parcialidade dos meios de comunicação no Brasil e no mundo, ainda mais nos tempos atuais. Igualmente, não se deve presumir que o juiz que conduz a Operação Lava Jato não possua discernimento sobre os meios de comunicação e seus vínculos com interesses econômicos, políticos e os seus próprios, e mesmo seu papel nas sociedades modernas. O que deve ser registrado é que Sérgio Moro não gasta uma única linha de sua reflexão sobre a possibilidade de imparcialidade dos meios de comunicação.
Em outras palavras: somente com o apoio intenso e permanente dos meios de comunicação é que a justiça poderá ser realizada. Como não se pode imaginar apoio dos meios de comunicação às ações judicias que não lhe interessam, é razoavelmente fácil de conceber que, no mínimo, deverá ocorrer convergência de interesses: entre o poder judiciário que exerce sua tarefa de processar e julgar e os meios de comunicação que intensa e permanentemente informam a opinião pública destes processos e julgamento levados pelo poder judiciário. Também ausente na reflexão de Sérgio Moro é a comparação com o caso italiano, tomado como paradigma, e a concentração do econômica dos grupos detentores dos meios de comunicação no Brasil. Na Itália, a diversidade de informação existe. O exemplo brasileiro é precisamente o oposto.
Na esteira de seu pensamento, Sérgio Moro não deixou dúvidas quanto ao lado que escolheu. Na busca de consolidar sua ideia exposta em 2004, compareceu a diversos eventos e recebeu prêmios patrocinados por meios de comunicação abertamente desfavoráveis ao Partido dos Trabalhadores e aos ex-Presidentes Lula e Dilma Rousseff, e até pelos principais adversários políticos como o hoje Prefeito de São Paulo, João Dória; determinou desnecessária condução coercitiva do ex-Presidente Lula e fez vazar conversas telefônicas – logo para a Rede Globo – em que a então Presidenta da República fazia-se ouvir, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal; deixou-se sorridente fotografar com a principal liderança de oposição ao Partido dos Trabalhadores e de seus governos. Estes são apenas alguns episódios mais destacados. Há inúmeros deles, a exigirem mais detalhes, mas se encontram na forma de fontes primárias para pesquisadores com maior espaço para escrita, e estão disponíveis em sítios da rede mundial.
Há um elemento objetivo que possibilita a confirmação de parcialidade do juiz Moro. O próprio Sérgio Moro pediu “escusas” ao Min. Teori Zavascki quando da divulgação indevida de conversa telefônica entre o ex-Presidente Lula e a então Presidenta Dilma Rousseff. Embora se saiba que “escusas” não se constituem em qualquer figura processual a dissipar punição por infração praticada por magistrado, causou espanto a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região quando esta atitude do juiz Moro foi reclamada naquela Corte. As palavras do Relator são claras, a não permitirem dubiedade quando decidem pela não aplicação de qualquer penalidade ao juiz da 13ª Vara Federal no Paraná:
Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada “Operação Lava-Jato”, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, por parte daqueles, garantindo-se assim a futura aplicação da lei penal, é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º, XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal. (…) Parece-me, pois, incensurável a visão do magistrado representado (…).
Até o momento, não se deu a revisão deste entendimento do juiz Moro, confirmado pelo TRF da 4ª Região. Neste conjunto de fatos objetivos reside também o fracasso da democracia brasileira e de sua Constituição Federal. Nossa democracia sempre teve enormes dificuldades para lidar com o republicanismo no âmbito do Poder Judiciário. O sentimento de casta, a gozar de privilégios especiais, com a concepção clânica da política tem caracterizado uma sociedade de tradição escravocrata, a preferir ser servida. Mesmo os olhares conservadores sobre o Brasil constatam tal realidade.
Como explicar que se sinta um juiz livre para cometer atos ilegais, e ainda dar ampla divulgação desta ilegalidade sem qualquer repreensão? Somente a certeza da impunidade relativamente aos seus atos, e o compadrio das instâncias superiores finalmente capturadas pela “opinião pública” explicam a sobrevivência de afrontas tão graves à democracia e à Constituição.
Estes precedentes tornaram possível que se previsse a decisão que condenou o ex-Presidente Lula. Era o desfecho anunciado. Há a sádica celebração dos que são contrários ao ex-Presidente e que não se cansam de dizer que “Lula deve ser preso” sem saberem qual crime teria sido cometido e, menos ainda, quais seriam as provas. Por isso, respondo ao que indaguei no começo deste rápido escrito: desde o começo do processo, qualquer um já sabia que Lula seria condenado. Esta percepção era difundida amplamente em quase todos os meios de comunicação, quase todos os dias, com mais frequência após a apresentação das alegações finais da acusação e da defesa. Naturalmente que um ambiente institucional, ainda que regulado por uma constituição e leis a possuírem as formais eficácia e vigência, mas que permite a alguém que ingresse em juízo já condenado, não pode ser caracterizado como estado de direito. A ausência da possibilidade de um julgamento justo, sem condenação prévia, desencadeada por um juiz parcial, como é o caso que se analisa, só enfraquece a Constituição, as leis e a democracia.
O que a sentença contra o ex-Presidente significa não é a derrota processual que o atinge. A sentença é a derrota final de uma ordem constitucional que se queria nova no País. Tratava-se de um Constituição moderna, dirigente, intervencionista, que oferecia os mecanismos para que o Brasil fosse menos desigual e mais generoso com seu povo. Após a Emenda Constitucional nº 95/2016, que suspendeu a Constituição existente, e com a sentença contra Lula, não há mais Constituição, e não há mais democracia com um Poder Judiciário parcial e que não corrige a si quando se faz necessário.
Os reacionários de primeira e última hora têm mesmo o que comemorar. Quem nada tem a festejar é exatamente quem lutou por esta Constituição, quem deu sua vida pela democracia, pela independência do Poderes – de forma especial do Judiciário e pela ação do Ministério Público – e agora tem que assistir como os poderes do Estado podem ser usados para liquidar adversários. Talvez o erro tenha sido dos setores progressistas brasileiros, tão cegos a ponto de imaginar que, no Brasil, a “elite” nacional poderia atingir patamar civilizatório razoável, ainda que sob um forte modelo de economia de mercado.
Mas os que perpetraram o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, e os que o apoiaram estes, também são derrotados. O que atinge Lula agora, o precedente que se abriu com a remoção do cargo de uma Presidenta acerta o alvo do lado dos golpistas, vez que o rubicão foi atravessado. Não tenho a ingenuidade de pensar que o poder dos grandes meios de comunicação, em aliança com a burocracia judiciária patrimonializada, e com a elite econômica dependencista, tenham aprendido que, aquilo que atinge Lula, Dilma e o Partido dos Trabalhadores também os acerta, como agora se vê com os casos do Sen. Aécio Neves e do Pres. Michel Temer. Seria exigir destes setores algum progresso civilizatório, que nem de longe são capazes de enxergar. Não temos no Brasil uma elite que aprecia e respeita a história e o povo que possuem: ao contrário, odeiam o povo mestiço com quem são obrigados a conviver. Resta ao País, então, caminhar pelas próprias pernas, com seu povo. Sem esta ação, jamais deixaremos de ser um país do futuro.