DILMA ROUSSEFF*
O Manifesto Republicano, texto inaugural do movimento que resultaria na destituição da Monarquia e na Proclamação da República, tinha mais de seis mil palavras, mas nenhuma destas palavras era “escravidão”. Essa omissão denuncia o caráter oligárquico e reacionário do movimento. Não havia ali um único vocábulo que fizesse referência à base da riqueza econômica e da hierarquia social daquela sociedade que buscava transitar de um Império para uma República.
Todas as palavras relacionadas ao ideário da Revolução Francesa e da independência americana estavam lá em profusão, submetidas a uma releitura oligárquica: democracia, liberdade, descentralização. Para quem? Para os senhores latifundiários e não para o restante da população do País.
O caráter pretensamente moderno e avançado do texto não resistia ao confronto com um mundo em que a escravidão se prolongava de fato pela inércia deliberada dos donos de terras e pela condenação dos ex-escravos à continuidade da exploração. Ali nascia o princípio que iria reger a República Velha: a questão social era questão de polícia e não de política.
É estarrecedor que o Manifesto Republicano de 1870 se esmere na defesa dos “princípios morais” em geral, mas não denuncie a maior de todas as imoralidades: a escravidão.
É profundamente constrangedor que proponha uma “aurora da regeneração nacional”, mas não ofereça nada a uma população de escravos e ex-escravos. Que arvore-se em defender uma “democracia moderna”, mas desdenhe a participação da maioria e cale-se diante da mais antiga das crueldades: a negação do direito à humanidade a milhões de seres humanos.
O Manifesto acusava o Brasil de ser um “país isolado no seio do mundo”, mas fingia não ver que nosso isolamento se devia, antes, ao fato de sermos o último país do mundo a manter pessoas escravizadas.
A República foi proclamada um ano depois da Abolição formal da escravatura e as suas lideranças optaram por ignorar a real situação do País. Uma República – Velha – sem povo, com ex-escravos condenados à “escravidão informal”. Fomos obrigados a esperar a Revolução de 1930 para começar a tratar como povo a população urbana de ex-escravos. Tal descaso diz muito sobre o tipo de regime social que estava sendo fundado naquele momento.
Uma sociedade predatória, que continuaria excludente e injusta, como ocorrera por 300 anos; a continuidade de uma anticivilização imensamente cruel e desumana. E isso desde que os primeiros indígenas foram caçados para prestar serviço aos colonizadores e, desde que, em 1539, aportou por aqui o primeiro dos cerca de 10 mil navios carregados de negros sequestrados de seus países para serem vendidos como escravos no Brasil, aumentando os fantásticos lucros do comércio colonial. Foram mais de 5,5 milhões de pessoas capturadas na África, dos quais 4,8 milhões sobreviveram à travessia.
Por fugir da maior e mais candente de todas as questões nacionais – o trabalho escravo – a República nasceu velha. Por esquivar-se de tomar posição a respeito do drama humano que atingia praticamente todo o povo brasileiro, a República nasceu deformada.
Na verdade, por ser uma continuidade da exclusão, a República nasceu oligárquica. A força fundamental do movimento republicano era formada por fazendeiros, senhores de engenho, cafeicultores e produtores de leite. Uma oligarquia escravagista que se tornara republicana porque se opunha à abolição, decretada pelo velho regime monárquico, que, entre outras questões, negou indenização pecuniária aos donos de escravos alforriados.
Num país com a maior concentração de escravizados do mundo desde o Império Romano, a escravidão, raiz de nossa desigualdade, foi por isso sempre tolerada, preservada e escamoteada, inclusive, pelos proclamadores da República. E, grande ironia, o imperador era abolicionista e os republicanos eram escravagistas.
Os negros escravizados e ex-escravos formaram, sem dúvida, a maioria da população brasileira, de Norte a Sul e de Leste a Oeste do País. Hoje, as populações negras e afrodescendentes que continuam excluídas da riqueza e dos direitos humanos fundamentais ainda são maioria.
Nos 130 anos da República, é a desigualdade a maior mácula da nossa história. É ela quem assegura a posição vergonhosa do Brasil no ranking das nações mais injustas do planeta. Como evidencia o último livro de Thomas Piketty, Capital e Ideologia, o mais grave aspecto do mundo atual é a expansão acelerada da desigualdade, graças ao neoliberalismo, que se faz às expensas dos 50% mais pobres.
No ranking internacional em 2018, o Brasil é a segunda das regiões mais desiguais do mundo, com 56% da renda nacional total concentrada em 10% da população. Perde para a África do Sul, com seus 65%. Piketty invoca a escravidão para explicar esses dois maiores níveis de desigualdade.
Durante os governos do PT, conseguimos inverter a concentração de renda, retirando 36 milhões da pobreza extrema e o Brasil do Mapa da Fome da ONU, mas o impeachment de 2016 fez o nosso País andar para trás. Hoje, a desigualdade afronta o discurso dos governistas e dos neoliberais, que querem ocultar o fato de que 100 milhões de brasileiros estão vivendo com meros R$ 413 por mês.
É pela redução da desigualdade que o mundo hoje discute e debate novas políticas públicas. Reforma tributária progressiva, taxação dos mais ricos e tributação sobre grandes riquezas e herança. É pela manutenção da desigualdade que Luiz Inácio Lula da Silva permanece preso**, vítima de um julgamento político que o condenou sem provas, num processo eivado de ilegalidades.
É contra a desigualdade que devemos nos manter lutando.
*Texto publicado na edição de hoje do Estado de S. Paulo.
** Quando este texto foi escrito, Lula ainda não tinha obtido o direito à liberdade.