Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC/SP, autor do artigo “A sentença de Lula como medida de exceção”, publicado no livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, entende que a sentença que condenou o ex-presidente é um caso de ação paralela e desvinculada da lei:
— Não se aplicam as leis penais e o Direito, mas o justiçamento e a exceção. Naturaliza-se, pelo vício, a inobservância dos direitos dos acusados e réus. Usando uma expressão do jurista italiano e principal teórico do garantismo penal, Luigi Ferrajoli, pode-se dizer que há no Brasil um poder “desconstituinte”. As autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, responsáveis por cumprir e fazer cumprir a Constituição, a esvaziam de sentido, a violam.
A íntegra do artigo de Pedro Serrano:
A SENTENÇA DE LULA COMO MEDIDA DE EXCEÇÃO
A condenação do ex-presidente Lula a nove anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro é, creio que não a última, mas mais uma pá de cal a sepultar o Estado Democrático de Direito, confirmando a recorrência de medidas de exceção na nossa combalida democracia.
Obtida a partir daquilo que o advogado criminal Fernando Hideo chama de “processo penal de exceção” – ou seja, um processo com aparência de processo judicial, que cumpre ritos e supostamente observa a garantia constitucional à ampla defesa, quando, na verdade, é apenas um teatro, cujo final já está predeterminado no script – a sentença, se confirmada, pode trazer enormes prejuízos não apenas a Lula, mas a toda a sociedade brasileira.
É bastante evidente que o juiz Sergio Moro admitiu a defesa como um mero simulacro, uma maquiagem. Os argumentos e as provas apresentados pela defesa, assim como os depoimentos em favor do réu, nunca chegaram a ser considerados com o peso devido. A própria manutenção de Moro à frente do processo, quando a suspeita de parcialidade contra Lula era praticamente explícita, foi de uma inconveniência absoluta.
Mas, dentre as muitas arbitrariedades que macularam o processo até o momento, a condenação baseada em interpretações subjetivas e idealistas é a que causa maior constrangimento, além da certeza de que as liberdades públicas e os direitos fundamentais da liberdade, os chamados direitos negativos, estão ameaçados.
Vamos a alguns aspectos da sentença. Moro condenou Lula por corrupção passiva, sem entretanto, conseguir imputar-lhe um único ato de ofício específico, ou comando para sua produção ou omissão concreta e específica, ou ainda promessa de sua prática, que configure tal crime. Na ausência de comprovação de que o ex-presidente tivesse recebido vantagens indevidas (o apartamento triplex no Guarujá e a reforma do mesmo) como contrapartida por ter favorecido a empreiteira OAS em negociações com a Petrobras, Moro afirmou que o pagamento foi feito “em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam”. Além de meramente especulativo, o fundamento foge totalmente dos limites postos na acusação, tratando-se, portanto, de imputação sem a qual tenha havido direito a defesa.
Condenar quem quer que seja por um crime de corrupção genérico, “indeterminado”, interpretado a partir de ilações e abstrações é, no mínimo, incivilizado. O processo penal precisa lidar com fatos, provas, e não com suposições. Supõe-se que Lula era o comandante de uma organização, mas não há provas de que ele tenha dado uma ordem específica ilegal. Não há um ato de corrupção que demonstre sua participação na cadeia de comando daquele ato específico, nem tampouco a demonstração de que tenha prometido um ato específico para qualquer agente.
Para efeito de comparação, na decisão envolvendo o ex-presidente Fernando Collor, também acusado de corrupção, o Judiciário reconheceu que ele havia recebido benefícios ilícitos na reforma da Casa da Dinda e na doação do automóvel Fiat Elba. No entanto, como não havia a indicação de qual promessa ou ato específico ele teria praticado em troca de tais benefícios, Collor foi absolvido pelo entendimento de que o crime de corrupção não se consumou.
Voltando ao caso de Lula, a afirmação de que ele seria “proprietário de fato” do triplex é extremamente frágil, pois o ex-presidente jamais teve a posse do apartamento. Como foi demonstrado pela defesa, havia somente um plano de aquisição do imóvel, do qual Lula desistiu. A defesa apresentou ainda documentos e provas, não levados em consideração, de que o triplex é de propriedade da OAS e foi, inclusive, incorporado como bem da construtora para efeito de recuperação judicial.
Enquadramentos penais abstratos e inespecíficos como estes figuram em um contexto nacional de produção rotineira de normas penais de sentido vago, impreciso, que permitem interpretações extensivas, as quais, muitas vezes, atentam contra os valores mínimos de uma democracia. Trata-se de uma prática judicial não restrita à operação Lava Jato ou ao Brasil, muitas vezes fundadas em teorias autoritárias e normativas do direito, ao invés de científicas ou técnicas.
Pelo emprego cada vez mais frequente da utilização de conceitos indeterminados na elaboração das normas de direito sancionatório, em especial do penal, conceitos muito amplos e que abrangem potencialmente um grande número de situações, dificulta-se ao cidadão prever como o Estado vai reagir frente à conduta dele. O nullum crimen sine lege – não há crime sem lei anterior que o preveja –, um princípio de garantia da liberdade, que assegura a previsibilidade da conduta estatal, está sendo extremamente fragilizado.
Tais condições permitem que quase todas as condutas humanas que fogem do banal possam, por alguma interpretação jurídica, mesmo que falha por desconsiderar aspectos constitucionais, se tornar passíveis de sanção pelo Estado. E esse imbróglio normativo acaba por delegar a quem executa a lei – o delegado, o promotor, o juiz, o fiscal, o agente público em geral – o poder arbitrário, imperial, absolutista, de selecionar quem é atingido por essa norma e quem não é: isso é a essência da exceção.
Esse fenômeno trata-se de um dos aspectos possíveis de uma hipernomia geradora de anomia real.
A produção de normas de conceito impreciso submete os cidadãos a um poder arbitrário, pois não há nenhum controle de validade sobre o espectro normativo onde existe a norma. A legalidade sancionatória está paulatinamente perdendo o seu caráter de proteção e convertendo-se em mecanismo de exceção.
Ainda que não seja um fenômeno circunscrito ao Brasil, é aqui e nos países periféricos em geral que esse esvaziamento da Constituição e das garantias individuais, reforçado, aqui, pela sentença aplicada a Lula, produz os resultados mais trágicos.
O Brasil é o quarto país do mundo que mais encarcera e o que mais sobe no ranking de número de aprisionados, com foco na população jovem, negra e de periferia. É o país onde a polícia mais mata e morre. Isso tudo é resultado de um sistema de Justiça que produz medidas de exceção e é por elas gerenciado.
Há um discurso moralizador e uma certa ilusão impregnada na sociedade de que, com a prisão de grandes empresários e figurões da política, estaríamos mais próximos da igualdade entre ricos e pobres, o que é uma falácia. Não é por meio da universalização da injustiça praticada contra o pobre que se promoverá a igualdade, mas sim pela universalização dos direitos. Quando o pobre tiver direito à ampla defesa, ao invés de ser preso, torturado e morto na cadeia, sem nunca ter tido acesso a um advogado, estaremos mais perto de um sistema de Justiça com um mínimo de civilidade.
Muito em função dessa forma punitivista de se encarar o direito penal, criam-se normas penais de polícia soberana. Não se aplicam as leis penais e o Direito, mas o justiçamento e a exceção. Naturaliza-se, pelo vício, a inobservância dos direitos dos acusados e réus.
Usando uma expressão do jurista italiano e principal teórico do garantismo penal, Luigi Ferrajoli, pode-se dizer que há no Brasil um poder “desconstituinte”. As autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário, responsáveis por cumprir e fazer cumprir a Constituição, a esvaziam de sentido, a violam.
É natural que Estados Democráticos de Direito não funcionem perfeitamente, porém, o que estamos observando não é uma disfunção casual, mas sim uma patologia que aflige gravemente a democracia no Brasil e no mundo. Se as forças democráticas não souberem reunir os recursos necessários para sanar essa enfermidade, é provável que a paciente – a democracia – agonize e não resista.