Vale a pena ler o artigo de Míriam Leitão a quem respeito, apesar de ter notórias divergências em questões importantes, pois manifesta posições corajosas, lúcidas e dignas quando se trata da ditadura militar brasileira.
É verdade o que afirma. As declarações de Bolsonaro sobre o assassinato de Fernando Santa Cruz, ainda que involuntariamente, tem o poder de destacar novamente o papel das Forças Armadas naquele momento histórico. Tornam inevitável o questionamento da responsabilidade dos militares, sempre negada, na ocorrência das torturas, desaparecimentos e assassinatos de opositores que estavam sob a sua custódia. As palavras do Presidente tem o condão de indicar que os responsáveis mentiram e omitiram informações, escondendo os fatos mesmo depois da redemocratização. Não permitindo que as famílias das vítimas enterrassem seus mortos. Não permitindo que a Nação expurgasse os demônios do ódio e do autoritarismo.
Para mim, as declarações de Bolsonaro evidenciam as consequências nefastas das negativas, das evasivas e do silêncio dos responsáveis militares, diante da Comissão Nacional da Verdade, apesar dessa ser uma comissão sem força punitiva. Uma oportunidade perdida de virar a página do autoritarismo, o que, talvez, poderia ter ajudado a barrar o projeto fascista de poder expresso no Governo Bolsonaro.
EIS O ARTIGO DE MÍRIAM LEITÃO:
Bolsonaro mostra que os militares sempre mentiram sobre os crimes da ditadura
Durante mais de três décadas os militares disseram ao país que não tinham documentos, não sabiam dizer onde estavam os desaparecidos políticos, não souberam como morreram os que foram assassinados nos quartéis durante a ditadura militar. Hoje [ontem], o presidente Jair Bolsonaro disse o oposto. Primeiro, decidiu brincar com mais um drama humano e dizer ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que sabia como o pai do advogado havia morrido. Depois, criou a sua versão que culpa a esquerda.
O que o presidente fez é repulsivo. Mostra, como definiu Felipe Santa Cruz, crueldade e a falta completa de empatia que os seres humanos têm uns em relação aos outros. O presidente brinca com o sentimento de um filho que nunca conviveu com o pai porque ele foi morto aos 26 anos.
Mas, ao se colocar como o conhecedor dos segredos da ditadura, ele diz que há informações sonegadas ao país, que ele sabe onde estão. Nunca ficou tão claro que as Forças Armadas mentiram quando disseram não ter como recuperar os fatos. Nunca souberam, por exemplo, dizer as circunstâncias da morte de Vladimir Herzog, onde foi posto o corpo de Rubens Paiva, como foi assassinado num quartel da Aeronáutica o jovem Stuart Angel. As famílias dos muitos mortos e desaparecidos sempre quiseram a reparação da informação. Pediram a verdade. E tiveram como respostas o “nada sabemos”. E por isso é que um dia um bravo deputado, Alencar Furtado, fez um discurso-libelo em nome dos filhos do “talvez”, os órfãos do “quem sabe”. Alencar Furtado foi cassado pelo AI-5 pelo que disse.
O Brasil não teve o conforto das informações. Em nome da paz e da construção do futuro foi dito que aceitássemos essa perda de memória dos militares. Só que ontem, pela fala do presidente, caiu a máscara. O presidente se sente no direito de manipular as informações que foram sonegadas ao país e às famílias e jogar a culpa sobre as vítimas. Quem está com a palavra agora é o Exército, a Marinha, a Aeronáutica. O que houve com Felipe Santa Cruz, o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil? Como foram as circunstâncias dessa morte e de tantas outras ocorridas no período em que os militares governaram o Brasil? Onde estão os restos dos desaparecidos políticos?
A Constituição anda sendo desrespeitada diariamente pelo presidente da República. É hora de lembrar o que disse o grande Ulysses Guimarães ao promulgar a nossa Carta Magna: “Temos ódio à ditadura, ódio e nojo”. Ontem foi o dia de sentir nojo.
MÍRIAM LEITÃO