Livre Docente em Filosofia do Direito pela PUC/SP, o professor e jurista Álvaro de Azevedo Gonzaga entende que a aplicação do Direito não é a obsessão por uma verdade que precisa ser provada, mas a simples busca da verdade dos fatos, dentro dos princípios rigorosos do devido processo legal. No artigo abaixo, publicado no livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, Álvaro defende a absoluta discrição e neutralidade do Judiciário como garantia da Justiça:
— O protagonismo e a pessoalidade são perigosos e agem contra democracia. A lei é impessoal porque não é vítima de interesses e disputas. Ela só tem compromisso consigo mesma.
A íntegra do artigo:
QUANDO O DEVIDO PROCESSO LEGAL NÃO É SEGUIDO, A DEMOCRACIA PERDE
Álvaro de Azevedo Gonzaga*
A criação de leis aplicáveis a todas pessoas é um dos principais elementos que caracterizaram a passagem do poder absoluto, centrado na figura de um monarca, para uma sociedade que se pretenda igualitária.
Em linhas bem gerais e rápidas, estamos falando da consolidação da ideia de normas e princípios vinculantes para todos. Se desvios acontecem, todos devem ser julgados de acordo com tais normas e princípios universalmente aplicáveis.
Pois bem. O mundo das ideias é um. O mundo da realidade é outro. Infelizmente, muitas vezes, o segundo não passa de uma caricatura mal acabada do primeiro.
Falamos aqui do caso envolvendo o julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o juiz federal Sérgio Moro e o Ministério Público Federal.
A relação entre esses três elementos ganhou contornos, narrativas e episódios que, em muito, ultrapassaram o campo ao qual deveriam limitar-se: o devido processo legal.
A preocupação com a existência das leis – tão caras para a nossa sociedade – tornou-se secundária. Não há busca pela “verdade dos fatos”, que seria alcançada através e graças a aplicação e observação do processo legal. Temos, ao contrário, uma verdade que precisa ser provada, mesmo que, para tanto, a lei seja deixada de lado.
Talvez, por uma questão de perspectiva, ou preconceito do nosso tempo, vemos como absurdo e sem sentido o excessivo poder e autoridade que os monarcas tinham no passado. Qual o sentido de nações, países, milhares de pessoas terem obedecido cegamente a uma só pessoa que se colocava como superior a todas elas?
Bem. É essa a imagem que temos hoje. Contudo, um olhar menos prepotente do presente levaria em conta que o poder dos reis tinha como fonte a legitimação de questões de ordem divina, histórico-familiar, tradição e identidade, elementos essenciais naqueles tempos. Fatores tão fortes, de tanta relevância, que para aqueles povos justificavam e fundamentavam todo o poder concentrado na figura dos monarcas. Era daí que provinha o bem-estar da nação.
Por óbvio, não eram tempos melhores. Mas a organização social tinha esses elementos que lhe davam coesão. Nos dias de hoje, tal coesão deveria ter como fundamento a Constituição e demais dispositivos dela decorrentes. É da observação e do cumprimento desse acordo que esperamos obter o bem comum.
Contudo, ao que parece, nos dias de hoje, temos regredido em algumas questões. A sociedade brasileira – talvez sem ainda se dar conta disso – tem optado por acreditar numa visão particular de justiça (com jota minúsculo), ao invés do respeito às leis, as quais, por excelência, é o que define o que é a Justiça (com jota maiúsculo).
Deixemos mais claro o que defendemos aqui e o porquê do breve resgaste histórico da formação dos Estados Modernos. A lei como regulador da vida social existe para garantir a impessoalidade e para determinar que a sociedade funcione, segundo sua própria vontade. Ok. É claro que existem distorções, e a reforma política é uma necessidade. Mas é um modelo (em constante aperfeiçoamento) mais avançado em relação a outras formas de governo.
Questionamos: se em uma sociedade que observa as leis e julga os desvios de acordo com ela, já há tantas distorções e problemas, o que dizer de uma onde a lei, que deveria ser o paradigma principal, torna-se algo acessório?
Trocaremos a lei, que, com suas imperfeições, é fruto de um esforço coletivo e social, pela crença no bom caráter, no ideal messiânico que alguns personagens avocam para si? Voltaremos a nos submeter a ideias subjetivas, assim como faziam os súditos nas monarquias?
Acreditamos que já estão claras as críticas e preocupações que trazemos aqui. A observação do processo legal não pode ser vista como um impedimento para que a lei seja cumprida. A sua observação é o que garante o cumprimento da lei.
A condenação não é garantia de que foi feita a Justiça. A Justiça reside no fato de haver julgamento ou entendemos que todo acusado sempre será culpado? Não existem mais inocentes?
Não podemos substituir a defesa da Lei, que é a defesa do Estado de Democrático de Direito, pelo combate à corrupção, como se combater a segunda fosse possível sem o respeito ao primeiro.
Não se trata de relativizar e muito menos de defender a corrupção. Ao contrário, o combate à corrupção precisa ser tão firme e decidido a ponto de não permitirmos que se corrompam as leis para se combater a corrupção política.
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Quando Moro e Lula se encontraram em maio desse ano, o evento foi tratado como um confronto, um embate, uma disputa. Se é positivo por garantir emoção, páginas de jornais, clicks na internet ou, ainda, mobilizar os grupos políticos interessados no caso, enxergar a tomada de um depoimento de tal forma é um sinal de um processo judicial e de uma democracia doentes.
Que o presidente Lula use o encontro como uma peça política, que use jargões ou bravatas políticas lhe é lícito, natural e um direito. O que ele não pode fazer é faltar com o respeito, não atender o decoro exigido em uma sessão. Ao ser julgado em um processo, a lei estabelece quais são suas obrigações e – ao que consta – todas foram cumpridas.
Por outro lado, o juiz Sérgio Moro, ao assumir a postura de quem está do outro lado do ringue, preste a encarar o réu, foge das suas atribuições e, com isso, não prejudica só o processo, ou o réu, mas prejudica e atrapalha toda a democracia. Ele é um juiz, não um lutador.
Exemplos de uma atuação para além da sua atribuição não faltam. Antes de uma das manifestações dos paneleiros trajados com camisetas da seleção brasileira, Moro soltou uma nota dizendo sentir-se “tocado e emocionado” por ser homenageado pelos manifestantes. Existe uma página no Facebook chamada “Eu Moro com ele”. Pior que o trocadilho, só o fato da página ser mantida por sua esposa e alimentada com vídeos estrelados pelo próprio juiz.
Ainda é muito importante a ideia de que “ao juiz cabe se manifestar nos autos”. Isso tem alguma relevância? Ou é apenas uma observação, sem motivação, sem razão de ser? Vamos ignorar a Lei Orgânica da Magistratura?
De um político, não se espera impessoalidade. Se ele quiser ser impessoal, que o faça. A ele é facultada a possibilidade de agir como lhe interesse. No limite da lei, por suposto. Contudo, a um magistrado não é possível que aja de tal forma.
Um juiz não é e nem pode ser um herói. Um paladino da Justiça. Um combatente da corrupção. Ele não existe para isso. A sua atribuição não é essa. O juiz é um servidor da lei, um funcionário, alguém que atua em obediência a lei, jamais o contrário.
Para sermos diretos, se a decisão de um processo significa o avanço da sociedade, esse avanço é fruto da lei que foi observada. Não do juiz, que tão somente a cumpriu. Percebemos como é e como deve ser?
Não se trata aqui de diminuir a importância do juiz, do ministério público ou, ainda, da defesa. Contudo, é preciso ver as coisas como elas exatamente são.
Infelizmente, o juiz Sergio Moro entende esse processo de outra maneira. Fã declarado da operação mãos limpas da Itália, Moro viu a oportunidade de usar a sua função pública para combater a corrupção e moralizar o País. Ora de maneira declarada, ora indiretamente, o magistrado age de acordo com essa missão que avocou para si.
O protagonismo e a pessoalidade são perigosos e agem contra democracia. A lei é impessoal porque não é vítima de interesses e disputas. Ela só tem compromisso consigo mesma.
Quando Moro resolve dialogar, entrar em sintonia com manifestantes, com veículos de comunicação (que recebem despachos e decisões suas antes dos autos e dos advogados), seu compromisso, que deveria se restringir a lei, passa a ser com esses grupos. Daí as coisas se tornam confusas e danosas.
Para os paneleiros, para aqueles que vestiram a camiseta da seleção brasileira e foram as ruas, o presidente Lula é culpado. Ponto. Tais pessoas desejam vê-lo preso. Desejos, sonhos, vontades, quando se limitam a esferas pessoais, ok, sem problemas. Desejos não têm o poder de condenar o presidente.
Abrimos parênteses. O problema não é ele ser condenado, mas o desejo de condená-lo. Condenação não tem a ver com desejo, tem a ver com crime ter sido ou não praticado. Fechamos parênteses.
No entanto, quando aqueles quem têm o poder de condenar tornam-se parceiros ou colocam-se na posição de símbolo daqueles que têm o desejo, temos um problema de difícil solução. A decisão vincula-se à expectativa dos que o apoiam, e o apoio se deu porque houve a expectativa da decisão. O que deveria ser técnico e impessoal torna-se político e pessoal.
Quando analisamos a fragilidade das provas, o quanto se confunde o agir político com uma ação que, por natureza, seria criminosa… e disso, atribui-se a responsabilidade e a culpabilidade. A situação torna-se ainda mais trágica. A Justiça é colocada de lado. E, com isso, julgador e julgado perdem. E, com isso, a democracia perde.
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*Livre Docente em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Pós-Doutorados na Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e na Universidade de Coimbra. Doutor, Mestre e graduado em Direito pela PUC/SP. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Professor concursado da Faculdade de Direito da PUC/SP, tanto na Graduação como na Pós-Graduação Stricto Sensu. Professor e coordenador da OAB no Curso Fórum. Membro do Instituto Euro-Americano de Derecho Constitucional, na Condição de Membro Internacional. Ex-presidente do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em Políticas Públicas e Sociais. Coordenador, autor e coautor de inúmeras obras e artigos. Advogado.