Em palestra na Feira do Livro de Buenos Aires, apoiada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, a presidenta eleita Dilma Rousseff manifestou receio de que Lula seja vítima de algum atentado contra a sua vida, enquanto estiver preso.
— Todos nós devemos temer pelo Lula. Todos nós devemos estar atentos para denunciar qualquer novo ato de arbítrio em relação ao Lula. Eu temo pela vida do Lula. Não sei até onde irão. Temo pela comida que ele ingere, pela água que ele bebe – disse Dilma, para acrescentar:
— Lula é inocente. Por ser inocente, tem que estar livre. Estão cometendo um crime contra ele. Ele não tem que estar livre por ser um líder político. Tem de estar livre porque é inocente. Este processo que o condenou é uma vergonha, uma vergonha que contraria qualquer princípio de direitos humanos.
A presidenta eleita concluiu:
— Livre ou preso, Lula será presidente da República federativa do Brasil.
A SEGUIR, A PALESTRA DE DILMA ROUSSEFF NA ARGENTINA:
Eu vivi dois golpes de estado no Brasil. Vivi o golpe militar. Sei perfeitamente distinguir um golpe militar de um golpe parlamentar, judicial e midiático, como foi o que ocorreu, ou que começou no Brasil em 2016. Assim como o golpe militar é um processo, o que nós sofremos em 2016 também é.
O golpe militar extingue todos os direitos de liberdade e estende a todos o risco de prisão, tortura e morte. Sob alguns aspectos, se assemelha ao nazismo e ao fascismo. Tira os direitos de todos, de imediato.
O golpe parlamentar, midiático e judicial é diferente. Ele escolhe os seus inimigos. As instituições democráticas são enfraquecidas por dentro e sofrem uma redução de sua potencialidade e de sua força.
É o que se vê no Brasil, que está passando por outro tipo de golpe. Nem por isso, menos golpe. Assim como o golpe militar passou anos a fio negando que fosse um golpe, depois negou que houvesse presos políticos, é próprio de todos os golpes negar a sua condição.
O meu impeachment foi travestido de legalidade. Construiram um biombo que ocultava o caráter ilegal do processo, apesar de, aparentemente, os golpistas cumprirem todo o processo legal. Eles usaram a lei para violar a lei. Usaram os dispositivos constitucionais que prevêem o impeachment, para aprovar um impeachment sem que houvesse crime. Este método de usar o processo legal e a legislação para praticar um ato que, do ponto de vista do conteúdo, é ilegal, é o processo em curso no Brasil. Algo similar foi feito no Paraguai e também em Honduras.
É uma nova forma de golpe político, que tem por objetivo derrubar governos progressistas, aos quais não conseguem derrotar em eleições, pelo voto. Nas ditaduras, durante a Guerra Fria, brandiam o monsstro do comunismo, que comia criancinhas, e em nome deste medo prendiam e matavam. Agora, usam outros mecanismos, como o uso da lei para praticar a ilegalidade.
Para isto, eles contam com uma articulação entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Esta associação é fundamental. Há um suporte recíproco entre esses dois segmentos.
As razões do golpe são claras no Brasil. Nós derrotamos o projeto golpista por quatro eleições presidenciais consecutivas. Vencemos por quatro eleições seguidas a agenda econômica, social e geopolítica do PSDB, que é conservador, mas até a eleição de 2014 era um partido que funcionava plenamente no campo democrático. Quando viram que não ganhariam as eleições, partiram para o golpe.
No Chile em que ascendeu Pinochet e na Inglaterra de Margareth Thatcher fizeram aquilo que Milton Friedman conceituou como o políticamente impossível se transformando no políticamente inevitável. Thatcher aproveitou a Guerra das Mavinas para fazer as reformas ultraconservadoras e ultraliberais na Inglaterra. É aproveitar uma crise e transformar o politicamente impossível no politicamente inevitável. Como se faz esta mágica? A crise tem de ser acirrada, o ódio tem de ser destilado, um inimigo interno ou externo tem de ser definido. E cria-se, através da intolerância e do ódio – e da midia – o clima para o golpe.
No Brasil nós dissemos que o golpe era misógino, e foi. Usaram contra mim, pela mídia, todos os estereótipos que usam contra as mulheres. Como mulher, eu era dura, frágil e obcecada com o trabalho. O homem era firme, forte e trabalhador. Também usaram todos os estereótipos de baixo nível de cunho sexual. Este é o clima que criaram, é uma espécie de linguagem do golpe.
Mas o golpe foi feito para enquadrar o Brasil econômica, social e geopoliticamente. Nós nadávamos contra a corrente do mundo. Junto com outros países da América Latina, crescíamos, distribuíamos renda e reduziamos a desigualdade enquanto o resto do mundo fazia o contrário – a começar pelos Estados Unidos. O golpe aconteceu para renquadrar o Brasil ao neoliberalismo.
O golpe veio para acabar comigo, me retirando do governo; com o Partido dos Trabalhadores, impondo ao PT um verdadeiro lawfare; e tornando o Lula vítima da justiça do inimigo. Ele passa a ser tratado não como um adversário, mas como um inimigo, e inimigos são destruidos. Em vez de usar armas propriamente ditas, utilizam processo legais e as leis. A lei vira uma arma de destruição civil. Não destrói fisicamente, mas tira do mapa político, do mapa da cidadania, retira direitos, desmoraliza.
Já faz parte da história a cena em que o chefe da equipe dos procuradores de Curitiba mostrou um powerpoint que tinha o Lula no centro, cercado de crimes, como se fosse o chefe de uma organização criminosa, e um repórter fugiu do roteiro e perguntou o que não devia ter perguntado: ‘que provas o senhor tem do que está afirmando?’ E o procurador-chefe respondeu: ‘eu não tenho provas, eu tenho convicções’.
É no campo das condenações por convicção e sem provas que estão muitos inocentes. O Lula está sendo condenado por uma convicção, mas não só isto. O motivo fundamental pelo qual estão condenando o Lula e que este golpe, que é um processo, deu errado.
Deu errado porque eles disseram que ao se livrar de nós o Brasil seria a Terra Prometida. Haveria grande crescimento. Não só o Brasil não cresceu como está progressivamente entrando numa situação de caos econômico, fiscal e social.
A população começou a perceber as medidas que eles tomaram e que são contra os direitos do povo: a redução de todos os programas sociais, o corte drástico nas verbas para educação, a paralisação, na prática, de todas as escolas federais, a falta de investimento, falta dinheiro para custeio. Isto por causa da grande maluquice que é a medida que aprovaram, chamada teto de gastos, que congela investimentos em saúde e educação por 20 anos. Logo num país com o déficit educacional e de saúde do Brasil!
Isto só é possível se o Brasil for um país de planos-pilotos. Mas não é. Nos nossos governos, foram 47 milhões no Bolsa Família, 63 milhões no Mais Médicos, 20 milhões no Minha Casa Minha Vida. Tem que ser assim porque a carência é imensa. São séculos de inexistência de políticas públicas de inclusão social. Para as elites brasileiras, que apoiaram o golpe, colocar pobre no orçamento é crime. Nos nossos governos, todos os setores cresceram, mas os mais pobres cresceram proporcionalmente mais do que os mais ricos. E não podia ser diferente. Os mais pobres eram muito mais pobres. Milhões viviam na miséria. Milhões estavam no mapa da fome.
Quando os que deram o golpe começaram a fazer as suas reformas, o povo percebeu que os governos do PT tinham outro padrão e que agora suas oportunidades e seus direitos estavam sendo comprometidos. Na verdade, reduzidos a pó.
Era para nós sermos destruídos – eu, o PT e Lula. Mas nós não fomos destruídos. Ao contrário. Nós começamos a crescer novamente. Com eles aconteceu o oposto. Começaram a sofrer os efeitos da política golpista que aplicaram. Além disso, quando eu sofri o impeachment, eles disseram: “vamos estancar a sangria”, impedindo as investigações de corrupção. É simples: ‘coloca o presidente ilegítimo na direção do país e ele vai impedir as investigações’. Não foi isso que aconteceu. A Lava a Jato gerou um fogo-amigo para cima dos golpistas. Eles foram desmoralizados por malas cheias de dinheiro, contas na Suiça e coisas assim.
Nós crescemos, os golpistas foram reduzidos a pó. Nenhuma das lideranças políticas que nos enfrentaram nas últimas quatro eleições gerais tem condições de vencer qualquer eleição no Brasil. Porque quando abriram a caixa dos monstros a que costumo me referir, permitiram a saída lá de dentro da extrema direita. Foi a extrema direita brasileira que cresceu. Como o Bolsonaro, aquele que defende a tortura.
Ao contrário do que ocorreu na Argentina, no Brasil o processo de transição da ditadura para a democracia teve uma espécie de conciliação pelo alto, que impediu a investigação da tortura e de assassinatos, crimes contra a humanidade. Só por isto é possível, no Congresso brasileiro, que um deputado federal vá ao microfone para defender a ditadura militar, a tortura e o torturador. É por isso que eu presto tributo às Mães da Praça de Maio, que impediram, com sua luta, que se deixasse de investigar os desaparecimentos políticos. Talvez por isso para muitos de vocês seja difícil compreender que este senhor, o deputado a que me referi, seja o segundo colocado nas pesquisas eleitorais.
O que aconteceu, então, é que o Lula cresce, se torna cada vez mais favorito, com uma distância muito grande em relação aos outros candidatos. Ao mesmo tempo, reduzia-se a possibilidade de acontecer aquilo que a mídia mais buscou no Brasil nos últimos anos, que é a destruição da sua figura pública. O Lula teve mais tempo de televisão em horário nobre com notícias contra ele do que qualquer outro ser humano na face da terra.
A mídia brasileira é oligopólica, controlada por quatro ou cinco famílias, e que funciona como uma variante de tribunal. É uma instãncia que nega qualquer contraditório, por mínimo que seja. Fazem uma longa matéria contra você e cinco minutos antes de colocar no ar ligam pra você e perguntam: ‘o que você tem a declarar sobre tal assunto?’ E nem dizem bem que assunto é. A mídia brasileira tem um papel extremamente nefasto e antidemocrático. Ela impede que a gente discuta sua brutal concentração de poder, nos acusando de querer censurar a imprensa. Todos nós sofremos este processo, mas o Brasil tem uma vítima que é a maior de todas. Ela se chama Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas Lula não se acomoda no papel de vítima. O Lula é um lutador. Neste período todo, nós fazemos aquilo que ele sempre faz; ele encontra forças na relação com o povo brasileiro. Nós fizemos caravanas. Entramos num ônibus e percorremos, cidade por cidade do Nordeste, o maior estado do país, que é Minas Gerais, e fizemos a mesma coisa no Sul do Brasil.
Eles percebem que não têm candidato e Lula ganha a eleição em qualquer cenário pesquisado. Eles não têm candidato porque o produto político do golpe é a extrema direita, é o sentimento de ódio, é a divisão do país, é a destruição do centro político. O centro sumiu, porque se comprometeu com o golpe, foi atingido pelo processo que usou contra nós. E, neste ambiente, Lula torna-se a maior força progressista e a única força política do país que tem condições de construir pontes, impedir que o ódio extravase em violência.
Quando você planta o ódio e a intolerância, só colhe violência. Está aí a morte da vereadora e líder negra Marielle Franco, no Rio de Janeiro. O assassinato da Marielle é político porque é fruto do ambiente de permissividade em relação ao ódio e à intolerância. Quando no Brasil uma vereadora da segunda maior cidade do país seria assassinada impunemente? E ao mesmo tempo, criando uma situação dificílima para as Forças Armadas, porque inventaram uma intervenção federal no Rio.
E ainda dizem que o crime organizado está nas favelas. Não está. Favela não tem sistema financeiro para lavar dinheiro. Favela não tem estrutura para comercializar armas pesadas ou armas leves. Favela não tem estrutura para traficar drogas em grandes volumes. Como disse Paulo Sérgio Pinheiro, o crime organizado deve estar em São Paulo ou em Miami, não nos bairros populares, mas nos grandes centros financeiros.
Esquecem deliberadamente de algumas coisas. Onde ocorreu o maior crime de corrupção dos últimos tempos no mundo? Foi em algum país da América Latina? Que eu saiba, não. O maior crime de corrupção dos últimos tempos foi cometido nos Estados Unidos durante a crise de 2008 e 2009, que se resumia à compra de ativos podres para vendê-los como se fossem ativos perfeitos e rentáveis.
E dizer que a corrupção é o maior crime é um erro. É um dos maiores, junto com tráfico de drogas e terrorismo. Os três dependem de estruturas financeiras, dependem de paraísos fiscais. Eles se chamam paraísos fiscais porque facilitam a evasão fiscal, o não pagamento de impostos. É isto que movimenta a rede de lavagem de dinheiro no mundo.
O Lula representa muito para todos nós. Naquele memorável discurso de São Bernardo ficou claro para nós que ele de fato não é uma pessoa física. Ele é uma ideia. Por isso ele disse “não adianta vocês me prenderem porque vivo ou morto, preso ou solto, condenado ou absolvido, eu estarei na eleição de 2018”.
As pessoas às vezes viram símbolos. Ele é símbolo de um outro mundo possível no Brasil. Ele é símbolo da possibilidade de você crescer e ver a criação de oportunidade para o povo crescer.
Ele é símbolo para muitos povos do mundo. Mas para o nosso povo, ele é símbolo para o pedreiro, para a empregada doméstica, para o operário, para o professor, para o intelectual…
E Lula é a única arma que nós temos, hoje, para derrotar o retrocesso que estão impondo ao Brasil e o violento enquadramento do Brasil no neoliberalismo. Enquadramento que eles ainda não conseguiram. Eles precisam de um nível mínimo de legitimidade para vender parte da Petrobras, de um nível mínimo de legitimidade para nos ameaçar com a reforma da previdência.
O Lula pode acabar com a vergonha que o Brasil está passando: o desemprego, o maior deficit fiscal de todos os tempos, o menor investimento público em 50 anos… O povo brasileiro reconhece em Lula o contrário de tudo isso.
Por isso ele está encarcerado. Eu temo pela vida do Lula. Não sei até onde irão. Temo pela comida que ele ingere, pela água que ele bebe. Temo porque eles foram capazes de impedir a visita do Prêmio Nobel da Paz, Perez Esquivel, e Leonardo Boff, a maior liderança religiosa alternativa do Brasil. Temo porque eles impediram até o médico de visitá-lo.
O Brasil está sendo mais duro com Lula, que está cumprindo pena, do que a ditadura foi conosco, que também estivemos presos e, passada a fase de absoluta ilegalidade e de torturas, acabávamos nos tornando presos legais e tinhamos direito a visitas. Isto acontece porque eles temem o Lula. Uma das razões do isolamento de Lula é que ele fala muito, e fala criticamente. Isto foi dito por eles.
Solitária é uma forma de punição. A gente depende do rosto do outro para viver. A gente depende do olhar, a gente depende do sorriso. Por isso é muito grave o que estão fazendo com Lula. Ele está sendo isolado. E eu não sei se quem isola não pode cometer outros delitos.
Lula é inocente. Por ser inocente, tem que estar livre. Estão cometendo um crime contra ele. Ele não tem que estar livre por ser um líder político. Tem de estar livre porque é inocente. Este processo que o condenou é uma vergonha, uma vergonha que contraria qualquer princípio de direitos humanos.
Todos nós devemos temer pelo Lula. Todos nós devemos estar atentos para denunciar qualquer novo ato de arbítrio em relação ao Lula.
Livre ou preso ele será presidente da República federativa do Brasil.