por Jorge Alexandre Neves*
Muita gente tem se perguntado, ultimamente, como chegamos até aqui. O Brasil vive hoje uma situação de enorme perigo epidemiológico agravada por ter no seu comando o pior governo da sua história. Como vários especialistas mostraram, o próprio Ministério da Saúde (MS) falhou seriamente no processo de preparação para a chegada do coronavírus. Já vínhamos vivendo um apagão administrativo no INSS (a fila de espera para aposentadorias e licenças), no INEP (o ENEM desastroso), no SUAS (a enorme fila do PBF), no IBAMA (exemplos múltiplos), no próprio SUS (múltiplas falhas nos serviços ofertados). Todavia, hoje o MS e seu titular são um importante ponto de resistência à irracionalidade absoluta do presidente da República e de uma ala do governo. Sem esse contraponto de comprometimento com a ciência e a racionalidade, o drama que estamos vivendo – e cuja face mais assustadora ainda estar por se mostrar – seria muito maior.
O que me chama mais a atenção, hoje, é a enorme quantidade de intelectuais progressistas desesperados com a realidade que vivemos e sem realmente entender como chegamos até aqui. Na minha avaliação, o momento crítico do nosso desastre foi o dia 16 de março de 2016. Neste dia, o então juiz Sérgio Moro gravou ilegalmente uma conversa da então presidenta Dilma Rousseff com o ex-presidente Lula e, num segundo ato ainda mais escandalosamente ilegal, vazou o áudio para a imprensa. Todo golpe começa com um ato ilegal e, naquele dia, tivemos o marco inaugural do golpe estamental de 2016.
Penso que a grande lição que devemos aprender com a cadeia de acontecimentos que se sucederam a partir do dia 16 de março de 2016 é que o alicerce de qualquer democracia é formado por uma série de pilares e que um deles é a racionalidade do direito, como bem demonstrou Franz Neumann em seu importante – e pouquíssimo lido – livro sobre o regime nazista (1). Quando as leis deixam de ser a base do direito, este perde seu fundamento racional e, assim, se inicia uma desorganização total do Estado. O Beemote toma o lugar do Leviatã. O Império da Lei (2) se desmancha como um castelo de cartas. E com ele, vai junto a democracia.
Portanto, o compromisso com a democracia como a conhecemos significa o compromisso com a lei (o que não significa que não se deva tentar mudá-la). Infelizmente, muitos dos intelectuais progressistas que hoje publicam seus artigos desesperados com o momento que vivemos no Brasil esqueceram dessa lição básica em março de 2016. Apoiaram entusiasmadamente todas as ilegalidades cometidas pelo juiz Sérgio Moro e pela força tarefa da lava jato.
Uma vez mais recorrendo ao livro de Franz Neumann, a destruição da racionalidade do direito é a antessala do aniquilamento do Estado Liberal. Mas fica a pergunta: por que tantos intelectuais liberais-progressistas aderiram tranquilamente a esse processo de destruição do Estado Liberal, à substituição do Leviatã pelo Beemote? Só consigo encontrar uma resposta: por ódio! Ódio a que? A Lula e ao PT! E por que tanto ódio? Por várias razões: elitismo (pode parecer estranho, mas o fato é que muitos intelectuais progressistas são elitistas, conseguem pensar em fazer coisas boas para o povo, mas têm enorme dificuldade de trabalhar com o povo) (3), purismo (a realpolitik cobra seu preço e a Lei de Ferro da Oligarquia, de Robert Michels se mostrou, mais uma vez, poderosa, ao explicar alguns elementos da realidade dos governos petistas, no Brasil) etc (4).
Hoje o Brasil vive uma situação dramática e isso é resultado de uma cadeia de acontecimentos que só foi possível porque muita “gente boa” aceitou alegremente apoiar a destruição do Estado Democrático de Direito. Espero que tenham aprendido a lição!
Por outro lado, não quero encerrar esta coluna sem reconhecer que, também à esquerda do espectro político fica a lição. É necessário admitir que a esquerda flertou com a ruptura do Estado Liberal, de múltiplas formas: a) ao festejar e incentivar a judicialização das políticas públicas, desde que favoráveis a posições que lhe são caras (5); b) ao promover a aplicação de doutrinas jurídicas de caráter quase anárquico (há doutrinas ou teorias que devem ser tratadas seriamente na academia, mas daí a chegar ao mundo real…); c) ao banalizar o expediente da desobediência civil; d) ao, por razões de interesses políticos ou corporativos, se aliar a setores do estamento jurídico que, num segundo momento, se voltaram contra a própria esquerda e colaboraram para a destruição da racionalidade do direito. Espero que todos tenhamos aprendido essa dura lição da realidade!
*Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG.