* Aloizio Mercadante
O pensamento conservador sempre foi contra a construção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como caminho de oportunidades para acesso ao ensino superior no país. Nunca admitiu um exame republicano e meritocrático, que assegura a todos os estudantes a mesma oportunidade.
O Enem foi reformulado e acompanhado de um conjunto de políticas públicas de estímulo aos estudantes da escola pública e de baixa renda, com ações afirmativas para os negros e indígenas, historicamente excluídos. Este novo modelo de Enem, para democratizar o acesso e promover inclusão social no ensino superior, sempre foi alvo de críticas daqueles que nunca admitiram mais acesso ao conhecimento da maioria excluída da população brasileira. O PSDB, o DEM e demais aliados da direita sempre combateram o Enem e estas políticas públicas.
Votaram contra o Pro Uni e representaram contra esta proposta, que incluiu os mais pobres nas universidades, no STF. Combateram e impediram a aprovação da política de cotas para os estudantes das escolas públicas por mais de uma década. Adoraram o mesmo expediente: votaram contra e foram ao STF. Combateram o novo Fies, com juros subsidiados e prazos mais confortáveis que favorecem os estudantes de famílias de baixa renda. E sempre atacaram o Enem.
Agora, depois do golpe, ameaçam abertamente fechar as portas de oportunidades construídas pelo Enem. As declarações abaixo não deixam dúvida:
“O Enem, criado para avaliar o desempenho dos alunos e instruir a intervenção dos governos em favor da qualidade, transformou-se em porta de acesso – ou peneira – para selecionar estudantes universitários. Uma estupenda contradição”. (José Serra, artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 26/1/2012).
“Vamos ao engano. Em 2009 o Enem passou a usar a chamada Teoria da Resposta ao Item (TRI) para definir a pontuação dos alunos, tornados “vestibulandos”. Mas se recorreu à boa ciência para fazer política pública ruim”. (José Serra, artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 26/1/2012)
“O Enem-vestibular do PT concentrou, ainda, na prova de redação a demonstração da capacidade argumentativa do aluno. Além de as propostas virarem, muitas vezes, uma peneira ideológica, assistimos a um espetáculo de falta de método, incompetência e arbítrio. ” (José Serra, artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 26/1/2012)
“O fim do vestibular foi uma mentira. Hoje, o MEC faz o maior do planeta. E o Enem já não serve para avaliar a qualidade do ensino médio. Assim, o alardeado bem do petismo acabou juntando duas perversidades”. (José Serra, artigo publicado em O Globo em 04/11/2013)
“É razoável – com z e acento agudo – supor que o Enem se transformou numa máquina de selecionar pessoas segundo critérios arbitrários. O exame que deveria servir às reformas no ensino médio se transformou num mau diagnóstico e num vestibular incompetente”. (José Serra, artigo publicado em O Estado de S. Paulo em 28/3/2013)
“O problema não é o tamanho do Enem, o problema é a concepção” (Maria Helena Guimarães de Castro, entrevista para Agência Estado em 8/11/2010)
“A matriz da prova do Enem não serve para orientar esse currículo, pois significaria mantê-lo apenas ligado ao vestibular e não é o que queremos”. (Maria Helena Guimarães de Castro, entrevista para o Portal Aprendiz, do Uol, em 17/10/2011)
“O ensino médio vai mal porque o Enem engessou o sistema. O aluno ingressa no primeiro ano dessa etapa e já começa a fazer curso preparatório para o exame. Ou seja, o Enem virou o currículo. Isso está errado” (Maria Helena Guimarães de Castro, revista Veja em 21/10/2014)
O principal instrumento desta ameaça pública e assumida ao Enem é a Medida Provisória, autoritária e sem qualquer consulta, que pretende mudar o ensino médio de cima para baixo. Para facilitar o ataque, como denunciamos ontem, manipularam a divulgação do resultado do Enem por escola, retirando 96% dos estudantes do Institutos Federais do exame em 2015. Como são escolas de excelente qualidade, prejudicaram o desempenho das escolas públicas para fortalecer artificialmente o resultado das escolas privadas.
Assim, justificam a MP e questionam a própria existência do Enem como exame de acesso universal à educação superior. As escolas privadas que sempre selecionam os estudantes pela renda e muitas vezes, especialmente as que tiveram melhor resultado, com processos seletivos de acesso foram mantidas no ranking do Enem 2015. O Inep reconheceu a manipulação, mas os argumentos conservadores não foram alterados. Editorial do jornal O Globo repete os mesmos argumentos do PSDB e DEM e diz que o modelo do Enem está “exaurido”. O texto procura sustentar a tese que os resultados divulgados de forma manipulada pela equipe golpista do MEC, não são mais um instrumento de medição da qualidade do ensino médio, tendo sido transformado em um “vestibulão”.
Os governos dos estados controlam 84% da rede do ensino médio. São eles que contratam professores, definem a linha pedagógica, orientam o material didático, estabelecem a matriz de avaliação, a carreira e o salário dos professores. Todos têm o mesmo diagnóstico que o ensino médio precisa mudar para evoluir. Apesar que em alguns estados tivemos uma melhora significativa do Ideb e em outros, estagnação ou retrocesso.
Foi a partir desta posição comum de mudança no currículo do Ensino Médio, que construímos o processo da chamada Base Nacional Comum Curricular (BNCC), precedida de um amplo, transparente e participativo debate. A BNCC definiu uma proposta de mudança de currículo para todo o Ensino Básico, sendo que a proposta para o Ensino Médio foi apresentada ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e teve o apoio e envolvimento do Conselho Nacional de Secretário de Educação (Consed). Neste acordo, o Enem estaria alinhado com a BNCC, assegurando que os direitos e objetivos de aprendizagem definidos fossem os requisitos para elaboração das provas.
Desta forma, o acesso republicano pelo desempenho dos estudantes no Enem, continuaria sendo o critério de acesso ao Sisu, às Cotas para escola pública, ao ProUni, ao Fies e ao Ciência sem Fronteiras. A definição de um padrão nacional é fundamental para assegurar o mesmo direito de aprendizagem de todos os estudantes participantes do Enem e dos programas de acesso à educação superior.
Ficou acordado, também, que por este princípio essencial, que é a mesma igualdade de oportunidades para todos, que a BNCC seria 2\3 do currículo. A flexibilização e os novos itinerários formativos seriam construídos dialogando com os interesses dos estudantes e implantados progressivamente por parte dos Estados, no prazo de dois anos, com o acompanhamento de uma Comissão Nacional. Esta Comissão deveria implantar a BNCC, avaliar todo o processo, rever quando fosse o caso, propor caminhos de reorganização e assegurar parâmetros gerais nacionais para o componente optativo, tendo como prioridade o efetivo interesse dos estudantes. A desejada flexibilização e os novos itinerários formativos têm que estar, necessariamente associados ao direito universal de aprendizagem dos estudantes.
A Medida Provisória sofreu fortes contestações e recuos logo na partida, mas já eliminou a sociologia e filosofia como disciplinas obrigatórias. Definiu, ainda, que as demais disciplinas do currículo obrigatório irão aguardar a definição da BNCC. Porém, reduziu para 50% este componente obrigatório do currículo, colocando uma camisa de força na BNCC. Também delegou às redes estaduais a definição da outra metade, sem qualquer parâmetro nacional, progressividade e acompanhamento.
A Medida Provisória não assegura a todos os estudantes o direito universal à educação, nem a efetiva participação na definição dos itinerários formativos e disciplinas optativas. Como as redes possuem condições muito heterogêneas, é absolutamente previsível, que teremos um verdadeiro apartheid escolar no país. Mais do que isto: um claro comprometimento do Enem como exame nacional de acesso a todos os programas de apoio e vagas públicas federais no ensino superior.
Se prevalecer uma reforma que desobriga o Estado de assegurar as mesmas oportunidades educacionais a todos os estudantes do ensino médio, não há como preservar o Enem como o grande caminho de oportunidades ao ensino superior. Com esta Medida Provisória, não se sabe que educação devemos garantir para todos, quais objetivos e direitos de aprendizagem, que tipo de escola teremos e, portanto, não será possível um exame único nacional estabelecer uma única nota de corte para qualquer curso, em qualquer faculdade. Na prática, da forma como está, essa reforma do ensino médio tende a inviabilizar o Enem e o Sisu como caminhos de oportunidades para acesso ao ensino superior no Brasil.
A atual equipe do governo golpista já acabou com o Pronatec, Ciência sem Fronteira, cortou 90 mil vagas e atrasa o pagamento do Fies, acabou com as bolsas de residência médica e está criando um ambiente forjado, com manipulações grosseiras, para acabar com o Enem como exame universal de acesso ao ensino superior e todas as políticas de apoio à inclusão dos estudantes pobres das escolas públicas. Os interesses poderosos da indústria privada de vestibulares ameaçam o futuro do ENEM.
Todos esses programas apontam que para um único propósito: construir um caminho de oportunidades, estão ameaçados. No passado, quem podia pagar fazia vários vestibulares, quem não podia era excluído do processo.
No ano de 2015, 35% dos estudantes que se formaram e fizeram o Enade foram o primeiro de suas famílias a receber um diploma de ensino superior. Este processo de acesso e permanência na Universidade dos estudantes da escola pública, especialmente os pobres e negros, é que está sendo ameaçado.
O que está em jogo é a continuidade de nosso processo civilizatório, a construção de um Brasil mais justo, equânime e solidário. O que está em jogo é o futuro do filho do pedreiro que virou doutor, da criança que hoje come e vai à escola, da filha da empregada doméstica que participa do Ciência sem Fronteiras, do primeiro membro da família de pobres e afrodescendentes que consegue fazer uma faculdade. O que está em jogo, aqui, é o futuro do combate à desigualdade social no Brasil. O projeto do governo golpista, por tudo que representa, é a própria negação da essência da educação pública, ou seja, o direito universal de aprendizagem.
* Ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff.