Leia a seguir a entrevista de Dilma Rousseff ao DCM:
Dilma – Vivemos o momento mais grave da história brasileira desde a redemocratização. Vivemos uma situação inusitada no mundo, que é a convergência de um governo neoliberal com um regime político neofascista. O neofascismo de Bolsonaro está claro, mas a gente nunca pode esquecer que a parte prioritária deste governo é o neoliberalismo e suas reformas. Está em curso um processo de destruição da história brasileira do Século XX. História que teve dois grandes acontecimentos. O primeiro foi a construção do estado nacional brasileiro, que foi o estado desenvolvimentista, com as grandes estatais. E, num segundo momento, o estado de bem estar social, a partir da Constituição de 88, com todo o ressurgimento dos movimentos sociais. O estado construiu toda uma proteção ao trabalhador brasileiro, ao mercado de trabalho. Regulamentou as regras que davam garantias ao trabalhador nesta relaçao desigual entre o patrão e o empregado, em que o trabalhador é o polo mais fraco. Aí veio o governo Fernando Henrique Cardoso e introduziu algumas modificações que já criavam a ordem neoliberal. Exemplo disso está na visão da austeridade fiscal, que não olha o lado da criação de emprego. Só olha o lado do controle do endividamento e não olha o lado do crescimento econômico. No resto do mundo essas duas parelhas andam juntas, a estabilidade e o emprego. Quando o emprego cai, há uma preocupação generalizada. No Brasil tudo se passa diferente. Aqui, nesta proposta absurda que vemos, o desemprego será até tributado.
Nós assumimos, com Lula, e aconteceu que adotamos uma política de redução da desigualdade, num dos continentes mais desiguais do mundo. Nós só perdemos em desigualdade para o Oriente Médio. Dez por cento da população detêm 56% da renda nacional. Esta é a conclusão do Thomas Piketty em seu último livro.
Pergunta – Bolsonaro veio para aumentar esta concentração de renda?
Dilma – Ele veio para transformar o estado brasileiro num estado puramente neoliberal. O neoliberalismo no Brasil assume feições neofascistas. Porque nós, Lula e eu, impedimos por quaro eleições consecutivas que se implantasse aqui a agenda neoliberal proposta pelo PSDB. O PSDB era um partido democrático, mas foi seduzido pelo golpe, achando que herdaria uma parte substantiva desse processo. Mas as forças que eles desencadearam para me tirar do governo produziram um fogo amigo, que, pela participação deles no governo Temer e pelo absoluto descontrole da Lava Jato, provocou a destruição da capacidade eleitoral dos partidos de centro, de centro-direita e de direita, abrindo terreno para o surgimento do Bolsonaro, o surgimento da extrema-direita. Eles queriam nos detruir, mas o resultado do processo foi a desmontagem de tudo. Veja que o candidato à presidência que já tinha conquistado 40% dos votos, o Alckmin, levou menos de 5%. Este processo explica a ascensão do Bolsonaro. Não era só prender o Lula, para impedir que, sendo reconhecidamente o mais bem avaliado, chegasse ao governo. Era necessário também destruir o centro, a centro-direita e a direita. Mas eles são os responsáveis diretos do golpe. Acharam que herdariam o poder. Infelizmente para eles, e acho até que para todo o país, o processo que eles desencadearam levou ao surgimento do Bolsonaro.
Pergunta – A senhora já antevia isto, quando daquela sessão da Câmara. Que não ficaria pedra sobre pedra…
Dilma – Quando você retira do governo uma presidenta que não cometeu crime de responsabilidade, aí o golpe contamina todas as instituições. E torna todas as instituições presas fáceis deste processo, que aqui no Brasil é diferente do resto do mundo. No resto do mundo, o neoliberalismo surgiu com a Thatcher no Reino Unido e o Reagan nos Estados Unidos. Mas se tornaram estados liberais de direito. Não falo em estado democrático, porque logo cresceu a desigualdade, e a desiguadade corroi a democracia. Ocorreu o mesmo na Alemanha, até num governo social-democrata. Nestes países também acaba por surgir a extrema-direita – a Frente Nacional na França, o Trump nos Estados Unidos, a Vox na Espanha…
Pergunta – No Brasil a extrema-direita se caracteriza pela crueldade…
Dilma – Isto é próprio da extrema-direita. Se caracteriza pela violência, pela intolerância mais absoluta, por um nível de preconceito escancarado, contra mulheres, negros, LGBTIs, até contra o meio ambiente, o que é mais estarrecedor e anticivilizatório. Aqui no Brasil eles achavam que iam tutelar o Bolsonaro. No início da aliança, o mercado, as corporações e os partidos que apoiaram o golpe, todos apostavam na tutela. E o que fica claro é que o neofascismo e o neoliberalismo, que deveriam ser distintos, aqui no Brasil eles são irmãos xifópagos. Compartilham o mesmo cérebro. Não há um sem o outro. Hoje, eles têm um projeto: destruir o estado nacional. Primeiro, com um ataque à nossa soberania. Liberar a amazônia para a extração de minérios é um ataque à soberania brasileira, que tem na amazônia um dos seus pilares. Disso faz parte permitir o desmatamento, e as queimadas, esvaziar a fiscalização, liberar a exploração mineral, ter uma relação de desrespeito às etnias indígenas. Uma prova é o incentivo à violência que está levando à morte de lideranças indigenas. A outra questão é das estatais. A Embraer é um caso seríssimo. Era uma empresa de grande porte. Produzia aviões médios de alta qualidade. Recentemente, por meio de financiamento do governo brasileiro, durante mandato do PT, produziu o KC-390, um avião de carga que, com tecnologia brasileira, passou do uso da helice para a turbina a jato. Maior do que o Hércules e a jato. Um avião de carga estratégico. E a Embraer está sendo vendida para a Boeing.
E eu temo pela Petrobras. É a sétima empresa de petróleo do mundo. Eles passaram o tempo inteiro dizendo que a Petrobras estava quebrada. Nunca esteve quebrada. A geração de caixa da Petrobras é extraordinária. Nunca foi menos de US$ 13 bilhões por ano. Eles diziam que a aposta no pré-sal era uma fantasia do PT. Que nós não teriamos condições de retirar petróleo do pré-sal. Basta ver o seguinte: passamos mais de cem anos extraindo petróleo em terra e no pós-sal, e de 2006, quando descobrimos o pré-sal, até hoje, a produção do pré-sal ultrapassou o que foi produzido desde o início da exploração de petróleo no Brasil. E eles insistem: dizem que esta companhia de petróleo não tem recursos e precisa ser vendida em partes. A Petrobras criou tecnologia para exploração em águas profundas. Aí falam que não tem recursos. Mas tudo o que um banco ou qualquer instituição financeira do mundo mais deseja e emprestar para empresa de petróleo. Eles ainda desejam alienar o nosso passaporte para o futuro, como tentaram quando fizeram a última licitação recente do chamado excedente de petróleo.
O governo tenta destruir o estado de várias maneiras. Este pacote anticrime, com o excludente de ilicitude, que propuseram e foram derrotados, graças a Deus, tudo isso significa uma corrosão do estado de direito e das garantias individuais. Vai mais longe ainda, e entramos na educação. Sem educação de qualidade gratuita e garantida para toda a população, nós também não teremos soberania.
Pergunta – O golpe foi vingança porque você vetou aumentos salariais no STF?
Dilma – Não acho que teve relação com isto, não. O golpe não aconteceu porque eu fiz ou deixei de fazer alguma coisa. O golpe aconteceu pelo que nós não aceitávamos fazer, que era adotar esta agenda neoliberal, de reformas que tiram direitos dos trabalhadores, que fazem o que fizeram com a previdência. Quando o trabalho se torna precário, depois vale tudo. E chega ao ponto de o governo exigir que o desempregado pague imposto por estar desempregado. Nós nunca deixamos que a agenda neoliberal prosperasse. Tivemos que conviver com aspectos do neoliberalismo, como a Lei de Responsabilidade Fiscal. Apesar de ter aspectos bastante corretos, não é uma lei adequada quando se enfrenta crises. Ela traz um problema de relação orçamentária. Não dá para ter durante uma crise os mesmos princípios que voce tem durante uma expansão. Na crise, inclusive, nós fomos bastante conservadores. Mas eles exigiram de nós varias coisas impossíveis de serem completadas. O país praticamente parou.
Pergunta – Quem são eles?
Dilma – O mercado, parte expressiva do mercado, principalmente o setor financeiro, a mídia, o Pato Amarelo, que vocês viram aqui passeando pela Avenida Paulista. O Pato Amarelo hoje deve estar dando tiro no ouvido. O Trump vai lá e aumenta a tarifa de importação do aço. É um tiro no ouvido. Bolsonaro anuncia que vai levar a embaixada em Israel para Jerusalém. Outro tiro no ouvido, porque como ficará a exportação de carne? Briga com a Argentina, o maior consumidor de bens manufaturados brasileiros. Outro tiro no ouvido.
Eles apostaram que era o momento propício para o golpe porque havia uma crise econômica. E havia uma crise econômica. Nós não conseguiamos fazer passar nenhuma medida na Câmara. Havia uma crise política que a imprensa, esta imprensa que era a favor do golpe, chamou de pautas-bomba. Em vez de aprovar medidas que viabilizassem o orçamento, eles aprovavam medidas que explodiam o orçamento. Outra coisa: eu não tinha seis meses de governo e já havia 16 pedidos de impeachment contra mim. E teve pedido de impeachment contra mim apresentado no início do meu mandato. Criaram um clima que é nefasto ao investimento. O investimento paralisou.
Não acho que foi por causa dos salários que o STF não julgou o impeachment. Mas tem uma coisa grave antes disso. Em dezembro de 2015, o ministério público do Brasil já tinha recebido do MP da Suiça as contas secretas do Eduardo Cunha. E pediu ao STF a cassação do mandato dele e a sua prisão. Este pedido permaneceu durante seis meses dormindo candidamente dentro das gavetas do Supremo. Isto foi um elemento responsável pelo impeachment.
O Eduardo Cunha era uma espécie de pré-estreia do Bolsonaro. Ele combinava uma pauta fascista e ultraconservadora, o que servia para ele aumentar seu poder. E o Temer não pode alegar nenhuma ação de radicalismo do PT quando o PT decide não dar os votos para impedir uma coisa pública e notória, que o Eduardo Cunha seja condenado por má conduta pela comissão de ética. E o Temer não pode alegar que a negação de três votos causou o golpe. O que fazia o programa ‘A Ponte para o Futuro’, àquela altura já apresentado por Temer e pelo PMDB? Aquilo era o projeto de desmonte do estado nacional, que é o que está em andamento. O projeto constitucionaliza o ajuste fiscal, que vai ser a PEC-95, é o projeto da reforma trabalhista, é o projeto da reforma da previdência. Ali, o golpe estava gestado.
Pergunta – Estavam procurando um pretexto…
Dilma – Não foi nem um pretexto. Ainda havia por parte do Eduardo Cunha uma expectativa de não ser condenado pela comissão de ética. Ele supunha que se não fosse condenado pela comissão de ética, seria adotada a estrategia de estancar a sangria: me tirar do governo, assumir o Temer e o Temer, com Cunha ainda presidente da Câmara, o protegeria de qualquer investigação. A ideia básica e estratégica deles era essa. Com os três votos do PT, que era um absurdo se ele recebesse, ele queria ganhar tempo, não ser afastado da presidência da Câmara. Não sendo afastado da presidência da Câmara, e eu saindo da presidência da República… Ele tinha de me tirar porque sabia que havia desde dezembro uma ação contra ele dormindo na gaveta do STF. Esta ação é que iria tirá-lo do parlamento e colocá-lo na prisão, não os votos da comissão de ética. Por isto a imprensa relata que quando foram tirá-lo da presidência da Câmara ele perguntou: por que só agora? É obvio: ele já tinha feito o impeachment. A ideia dele era ganhar tempo sentado na cadeira, fazer o impeachment, o Temer assumir e tudo isso garantir a impunidade. Aquilo que o Jucá e Sérgio Machado, em conversa gravada, chamaram de estancar a sangria.
Pergunta – a senhora tentou, claramente, com a nomeação de Lula na Casa Civil, dar um reforço na área política para evitar o impeachment…
Dilma – Claramente, e nós explicamos isto à população: nós estamos nomeando Lula por dois motivos – primeiro porque eu tinha, tenho e vou continuar tendo absoluta confiança nele. Não só como grande político e articulador, mas por uma característica que sempre subestimaram, que é o fato de que o Lula é um excelente gestor. Na Casa Civil, ele faria um trabalho magnífico. Ele me ajudaria diante da crise política, mas também com a situação econômica difícil pela qual nós estávamos passando.
O que faz a Lava Jato, que, para mim, tem papel estruturante neste processo de criação dessa pauta neofascista? A grande contribuição para a pauta neofascista e para o surgimento do Bolsonaro foi dada pelo Sérgio Moro e pelo surgimento da Lava Jato. Criaram um mecanismo pelo qual eles definiam um alvo; se o alvo era ou não era culpado, pouco importava. Destruiam este alvo definido. Eles tinham uma postura de redução de danos democráticos, ou seja, tudo de democracia que podia existir era alvo. Obviamente que a presença de Lula era algo extremamente relevante para a democracia. Lula era capaz de conter todos os absurdos, paralisá-los, impedir que o Brasil sofresse um golpe de estado, mesmo que travestido de impeachment e de normalidade. O Lula teria, como ministro-chefe da Casa Civil, um papel estratégico. Inicialmente porque eu conheço o Lula intimamente, trabalhei com ele desde 2005 até 2010, todo santo dia. Esta capacidade que eu sei que o Lula tem seria muito importante.
Pergunta – Por isso que era um golpe que ía além do Eduardo Cunha…
Dilma – O Eduardo Cunha pretendia ser herdeiro. Mas a força que sustentou o golpe não era dele. A força vinha da tentativa de implantar a agenda neoliberal. E o aspecto principal do processo continua sendo este hoje. O neofascismo, apesar de nefasto, repugnante, não é o aspecto principal. O golpe, a prisão do Lula, tudo, foi feito para destruir direitos dos trabalhadores, comprometer a soberania das nossas estatais, prejudicar a regulamentação que nós impusemos a práticas ilegais na amazônia. Usaram os instrumentos do neofascismo, mas achavam que poderiam tutelar o neofascismo. Acontece que o neofascismo não se mostrou tutelável. Ele é ‘neo’ porque não é sequer nacionalista.
Pergunta – em novembro de 2014, a senhora chegou a elogiar a Lava Jato. Disse que ela estava vindo para mudar o Brasil para sempre. Em que momento a senhora percebeu que a Lava Jato tinha outra agenda?
Dilma – Não levou muito tempo, não. Quando eu elogiei a Lava Jato ela não tinha nascido inteiramente. Houve uma mobilização na sociedade e fizeram um projeto de lei contra organizações criminosas. Dentro desse projeto de lei, eu destaco dois artigos. Um dos artigos era uma nova tipificação da delação premiada. Outro tipificava melhor o crime de corrupção. Até então, só estava caracterizado o crime do corrompido, que era geralmente de um orgão público. O corruptor não estava tipificado devidamente. Naquele momento, de um determinado ponto de vista, era um avanço. Mas as contradições que existem em todos os processos humanos logo apareceram. E começo a perceber que a coisa está saindo do controle um pouco mais tarde. Não percebi no ano de 2014, comcei a perceber em 2015. Percebi uma íntima relação que há neste processo estruturante da Lava Jato. É usar de instrumentos formalmente legais para desrespeitar todos os princípios básicos do direito, como presunção da inocência e o devido processo legal. E usar isto como destruidor da integridade civil e cidadã da pessoa atingida. É o que se chama lawfare, usar a lei como arma de guerra. Para isto acontecer de forma eficaz, precisa de uma coisa: da imprensa. A mídia é um elemento fundamental da Lava Jato. A mídia funciona como uma espécie de quarta instância do Judiciário. Nesta quarta instância, o acusado não tem direito de defesa, não produz prova, ele é condenado antecipadamente e imediatamente entregue ao horror, ao ódio e ao escárnio público. É uma tentativa de destruição da pessoa. Esta relação com a mídia é típica da Lava Jato e de todos os processos de lawfare. Usa-se necessariamente a destruição do indivíduo perante a sociedade. Porque se não for assim, não haverá lawfare. O lawfare precisa dessa condenação sem provas pela mídia.
Pergunta – assim como a senhora em certo momento elogiou a Lava Jato, em outros falou que o controle da midia era o controle remoto. A senhora se arrepende de ter dito isso.
Dilma – Me arrependo amargamente (risos). Mas falo da mídia, A Lava Jato, naquele momento eu não a entendia. O que eu defendia quanto à mídia era aquilo que está em curso hoje, com oGoogle e com o Facebook. Além do controle social que tem que ser construído, tem de ter outros dois controles, que o estado precisa operar. Um controle, que eu queria e insistia muito, era o controle do monopólio, do oligopólio e da verticalização. Este é um controle econômico. Eles fogem deste controle feito o diabo da cruz. Este controle implicava que você não podia ter televisão, rádio, jornal, revista, mídia de internet ao mesmo tempo. Era necessário regular a propriedade, que estava desregulada. O outro controle, que no caso das tevês e dos jornais e das redes é um pouco mais complexo, é o controle que impede a divulgação de mentiras, notícias de conteúdo odioso e discriminar um usuário em relação ao outro. Principalmente quando se trata de concessão pública. Mas a mídia brasileira sempre tratou qualquerf ideia de regulação como uma forma de ferir a liberdade de imprensa. Eles usavam muito isso: que nós queríamos controlar o conteúdo. Foi quando eu disse que poderia ser controlado pelo controle remoto, porque o que eu queria antes era o controle econômico. O controle econômico sempre foi o mais eficaz. Mas não basta. Hoje, nos Estados Unidos, o que se discute é impedir que o Facebook controle o Instagram e o Whatsapp.
Mas eu sei que naquele momento havia outra luta ali. Eu acho que o Eduardo Cunha estava negociando com a Globo para ser eleito presidente da Câmara. Negociou para não deixar passar nenhum projeto que visasse qualquer regulamentação da mídia. E foi assim: “eu não deixarei passar quando for eleito presidente da Câmara”. Eu desconfio disso, a imprensa chegou a noticiar isto. Mas eu me arrependo muito de não ter sido, talvez, mais enfática. Perderia, devo avisar a vocês. Dada a força que a mídia exerce sobre o Congresso, eu perderia.
Pergunta – Mas tentaria, como a Cristina Kirchner…
Dilma – Tentaria. A Cristina tentou, né? Uma parte ela levou, outra parte não. Mas peço para falar outra coisa que tem sido bastante comentada. Muitas vezes se disse que o Brasil estava quebrado, naquele período pré-golpe. Quando é que um país está quebrado? Um país só está quebrado quando ele não consegue pagar suas dívidas com outros países do mundo. Uma dificuldade que, por exemplo, a Argentina, nosso vizinho e amigo, tem. Eles estão hoje com a presença do FMI lá dentro porque eles não têm reservas. O Brasil estava quebrado quando eu saí do governo porque não tinha reservas? Grandessíssima mentira! Nós tinhamos US$ 380 bilhões de reservas. A dólar de hoje, e vou botar apenas dólar de R$ 4, dá um R$ 1 trilhão 520 bilhões. O Brasil, portanto, tinha total condição de pagar seus credores. Até porque ele era um credor líquido. O Brasil tinha sido devedor ao longo de toda a sua vida, mas nós chegamos no governo e transformamos o Brasil num país credor. Eu estava no governo quando nós emprestamos até para o Fundo Monetário Internacional. Nós, Brasil, mais China Rússia, Índia e Africa do Sul, emprestamos recursos para que o FMI criasse um muro de contenção da crise do Euro. Isto foi em 2012 ou 13. Além disso, a dívida brasileira era em Real, ao contrário do que recebemos quando Lula chegou no governo e a dívida estava em dólar – o que era a pior situação do mundo. Tem uma mentira que se prega para o povo: que o governo é igual a uma família. Não é. Porque uma família não emite moeda, uma família não emite título de dívida, uma família não pode ir nos seus vizinhos e arrecadar tributos. Um governo emite moeda, emite titulos da dívida e arrecada tributos. Quando você tem toda esta capacidade, inclusive porque tem recursos suficientes como reservas, como país você não está quebrado. Além disso, é bom o povo saber que o Tesouro Nacional tem um colchão de recursos, que ele administra. E ainda havia quem dissesse que o Brasil estava quebrado porque o orçamento estava quebrado. Não! O que estava havendo era uma crise em que a despesa fica fixa e inelástica, mas a pobrezinha da receita cai, sofrendo efeitos da flutuação do crescimento econômico. Caiu vertiginosamente com a crise da atividade econômica. Mas, como no passado, nós superamos momentos de crise. Superamos o momento de queda do PIB em 2005/2006, superamos outro momento de crise de 2008 para 2009. Não havia nada de absurdo. Este papo de que não tinha dinheiro no país é uma falácia. Além disso, o Brasil era um país reconhecido internacionalmente. Não era isto em que está se transformando, um país sem credibilidade, em termos morais e de sua participação no mundo.
É uma coisa muito complicada essa história de que o Brasil estava quebrado. É que nem a Petrobras. Eles não conseguem explicar como de repente a Petrobras pode ter passado a ser uma das maiores empresas e o pré-sal uma grande riqueza. Num momento, o pré-sal era uma mentira, uma invenção dos petistas, e no dia seguinte vira uma das maiores e mais interessantes riquezas do mundo.
O mesmo fizeram com o Brasil. O controle dos gastos, com a PEC 95, impede o país de crescer. É impossível. No Brasil, também é impossível crescer sem a participaçao do investimento público. Quem é que financiava o longo prazo no Brasil? O estado.
Pergunta – Olhando restrospectivamente, o que a senhora não faria. E me refiro especificamentre às desonerações. Falam que um excesso de desonerações foi o motivo da crise.
Dilma – Esta questão das desonerações tem um aspecto segundo o qual é público e notório que quando você desonera, muitos empresários, em vez de usar o dinheiro que eles deixarão de gastar em impostos aplicando em mais investimentos, eles simplesmente embolsam. Aumentam sua margem de lucro. Mas o que nós fizemos, e não dá pra fazer autocrítica disso, foi a desoneração de bens de capital. A gente queria com isso contrariar a tendência de desindustrialização. Mas precisamos avaliar com muito cuidado. Quando a gente mandava uma lei para o Congresso, encontrava uma instituição nacional chamada “Jabuti”. “Jabuti que tá na árvore é enchente ou mal de gente”. Como não é enchente, é porque alguém botou lá. Este jabuti foi responsável por uma ampliação desordenada das desonerações. O que chegava na Câmara virava algo incontrolável e sem qualquer responsabilidade fiscal. Algumas desonserações nós não desoneramos, foram acrescentadas no Congresso. E não tinha saída. A não ser não mandar desoneração alguma. Era complexo. A gente fica numa ‘Escolha de Sofia’. Hoje, avaliando o que aconteceu, eu digo que não mandaria as desonerações.
Pergunta – A senhora ouviria mais o Lula, se voltasse àquela época. O Lula já disse que dizia para fazerem coisas e as coisas não aconteciam?
Dilma – A gente conversava normalmente. O Lula é uma pessoa respeitosa. Essa história de que o Lula exigia isto ou aquilo não é verdade. O Lula nunca fez isto. Fazem até acusações ao Lula baseadas nisso. Até no ministério público. E são acusações absurdas. Digo aqui, em alto e bom som, que as repudio inteiramente.
Pergunta – E como conselheiro?
Dilma – Eu sempre o tive como conselheiro. Mas ele não mandava nem pedia. O Lula não funciona assim. Desde que eu era ministra Chefe da Casa Civil, nunca me pediu pra fazer nada, nunca me disse “olha, resolva este problema desse jeito”. Ele não é assim, ele não faz isto. O Lula não desrespeita as pessoas com quem ele trabalha, seus parceiros políticos e os seus companheiros.
Pergunta – voltando no tempo, a senhora se candidataria em 2014?
Dilma – “E se” é algo que eu não faço. Eu parei de fazer “e se” no dia em que fui presa. Já pensou eu cumprindo três anos de cadeia e falando comigo mesma “e se eu não tivesse ido ali na rua…” aliás, foi numa rua aqui perto do Estadão. Não se faz isso na vida.