A MP DO ABSURDO
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A MP DO ABSURDO

A reserva de mercado concedida a algumas fontes energéticas fere o marco regulatório atual

28/05/2021 3:05

 

Por Mauricio Tolmasquim e Nelson Hubner*

(Valor Econômico)

“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos. Que me aconteceu? – pensou”.

Kafka traduz o desespero de um homem perante o absurdo. A medida provisória (MP) sobre a privatização da Eletrobras recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados, nos transporta para uma realidade parecida com a vivenciada por Gregor Samsa. A MP foi supostamente elaborada para alavancar investimentos para a expansão do setor elétrico, aumentar a competição e beneficiar o consumidor. No entanto, terá efeitos diametralmente opostos.

A enxurrada de votos recebidos pelo substitutivo espelha a sua capacidade de atender a uma miríade de grupos de interesses, sem se importar com o consumidor. Contrariando a lógica econômica, a legislação impõe a contratação de 6.000 MW de termelétricas em regiões afastadas do mercado consumidor. Por caminhos tortuosos, força a construção de gasodutos onerosos ao estipular que a localização das usinas deve ser em pontos que não possuam suprimento de gás. A localização prévia das usinas obriga a realização de leilões regionais, limitando sobremaneira o número de competidores. Em desrespeito ao consumidor e em dessintonia com o meio ambiente, o texto obriga ainda as termelétricas a funcionarem com alto grau de inflexibilidade, desperdiçando a energia gerada pelas fontes eólica, solar e hidrelétrica nos momentos de abundância de recursos naturais renováveis.

Não se pode, contudo, acusar o relatório de viesado em favor de uma única fonte. As pequenas centrais hidrelétricas não foram esquecidas. Contrariando a base de um mercado competitivo, a legislação cria uma generosa reserva de mercado para esta fonte energética, aquinhoando-a com 40% a 50% do mercado dos leilões regulados. Os atributos de renovabilidade da fonte não são suficientes para justificar tamanha generosidade com os recursos do consumidor, sobretudo quando se sabe que a sua contratação no último leilão saiu por mais que o dobro das energias eólica e solar.

A reserva de mercado não se limita às duas fontes energéticas, ela também se estende a alguns empreendimentos específicos. A legislação autoriza que os contratos das usinas do Programa de Fontes Alternativos de Energia (Proinfa), que expiram a partir de 2026, sejam prorrogados por mais vinte anos. Como se não bastasse este benefício, a legislação também confere um preço generoso para a contratação destas usinas. Os contratos deverão ser prorrogados por preço igual ao preço teto do Leilão A-6 de 2019, valor bem superior aos resultantes do processo competitivo.

O aumento da tarifa de energia está no DNA da proposta aprovada. Ela retira do consumidor o benefício atualmente usufruído pela geração mais barata de usinas hidrelétricas amortizadas. Permite que a Eletrobras venda essa energia por valor que pode atingir até três vezes o valor atualmente pago pelo consumidor. A diferença de preços implicará uma transferência de renda de algumas centenas de bilhões de reais dos consumidores de energia para o Tesouro e certos setores nos próximos 30 anos.

Parte importante do excedente econômico será repartido entre a União e programas regionais tais como: revitalização de bacias nas regiões Nordeste e Sudeste e a geração na Amazônia. Assim, garante-se que os grupos de interesse regionais também tenham o seu quinhão.

Até parte dos ganhos futuros que o consumidor teria com o fim do pagamento do financiamento da usina de Itaipu são abocanhados pela legislação. O fim do pagamento da dívida assumida para a construção da usina, paga por tarifa em dólar pelos consumidores, permitiria conferir a todos o benefício de uma energia mais barata. O texto aprovado desvia parte do excedente econômico a ser gerado por Itaipu, dos consumidores de energia para os programas de desenvolvimento regional e de transferência de renda. Por mais justos que sejam estes programas, retirar do consumidor de energia elétrica os recursos financeiros que poderiam ser utilizados para baratear a tarifa reduz a competitividade da economia, em especial da indústria nacional, e é socialmente injusto.

Interessante que a argumentação original da MP é garantir uma Eletrobras privada com dinheiro em caixa para aplicar na expansão do sistema elétrico, como se a atração de investimentos fosse um problema. Contudo, não faltam investimentos no setor.

Os contratos de longo prazo resultantes dos leilões garantem uma previsibilidade de receita para o investidor e acesso a financiamento. Entre 2005 e 2018, a capacidade instalada de geração cresceu 70%, muito mais que a economia. Quase 80% deste investimento foi feito pelo capital privado, atraído sobretudo pelos contratos de longo prazo oferecidos nos leilões de compra de energia e mais recentemente pelas oportunidades no mercado livre. Os leilões A-3 e A-4 deste ano totalizam uma oferta mais de cinco vezes maior do que o necessário para atender o crescimento anual médio da demanda de energia.

A competição tão almejada sairá profundamente afetada. A reserva de mercado concedida a algumas fontes energéticas e a certos grupos fere o âmago mesmo do marco regulatório atual, que é de competição através de leilões públicos ou do mercado livre. Além disto, a legislação dará a uma Eletrobras privada um enorme poder de mercado com efeitos perversos para uma competição justa, seja no mercado regulado seja no mercado livre.

O consumidor de energia elétrica será o grande perdedor de todo este processo. A MP enunciada como mecanismo de aumento de eficiência econômica, deverá causar uma desorganização do mercado elétrico e aumentar as tarifas para o consumidor. Se nada for feito, o consumidor à imagem de Gregório Samsa, em breve acordará assustado pensando, “o que me aconteceu?

*Mauricio T. Tolmasquim é professor titular da Coppe/UFRJ, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

Nelson Hubner, consultor, foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

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