OS ERROS QUE CONDENARAM LULA
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OS ERROS QUE CONDENARAM LULA

“O ‘direito penal de autor’ é a regra consolidada dessa democracia de ocasião. Resta saber como os Tribunais que aguardam esse processo vão lidar com tamanho quiproquó.”

15/01/2018 9:50

O que Mauricio Stegemann Dieter e Jacson Zilio assinam, no livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, é mais do que um artigo ou um texto de opinião. Trata-se de um ensaio, no sentido exato da expressão, que pode ser de interesse de juristas, juízes, integrantes do ministério público, advogados, professores e, sobretudo, estudantes de direito. Sem dúvida, também pode, e deve, ser lido por leigos, ainda que num ou noutro ponto os autores sejam obrigados a adotar expressões técnicas que, no entanto, mesmo desconhecidas da maioria, não prejudicam em nada o entendimento de conteúdo e da argumentação.

Apesar de longo para os padrões das redes sociais na internet, nem por isso deixa de ser relevante e recomendável – inclusive, diga-se, digno de sugestão de leitura aos juízes do TRF que, neste momento, estão debruçados sobre a extensa e prolixa sentença que condenou Lula em primeira instância, e prestes a tomar uma decisão importante para o futuro do Brasil.

Mauricio Stegemann é professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; pós-doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Doutor pela Universidade Federal do Paraná. Jacson Zilio é professor de Criminologia e Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e doutor pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha/Espanha).

Algumas conclusões do ensaio podem ser reproduzidas aqui, sem prejuízo da leitura integral, em seguida:

“Uma análise técnica logo encontra na sentença, em sua quase insuportável extensão, problemas dogmáticos de primeira ordem e todos tão evidentes que dispensam maior fundamentação teórica.Também revela que a decisão pretendeu, pelo cansaço, contornar os óbices que impediam uma condenação com inovações contrárias à lei, em nome de uma messiânica luta contra a corrupção. Algo louvável, talvez, não fosse o fato de que pressupõe, sem limite, o sacrifício da liberdade humana, assegurada pelo respeito aos direitos fundamentais ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa, ao juiz natural, à correlação entre acusação e sentença, à proteção à intimidade e vida privada, à presunção de inocência, à vedação de provas ilícitas etc.

“O Estado de Direito caracteriza-se pelo poder legal de controlar pulsões punitivas utilitaristas gerais e individuais. A sentença analisada, contudo, confirma que nem sempre isso é possível. Do ponto de vista político, ao menos, a condenação é o começo de uma despedida do julgador: com seu protagonismo encerrado, sobrarão os resíduos dessa fama que não parece ter sido de todo indesejada, especialmente diante do aberto ativismo na defesa da causa, de ser referente jurídico informal de parlamentares, de promover iniciativas legislativas, defender a própria atuação em artigos de opinião e convocar e orientar partidários da operação em manifestações, entre outras atividades proibidas ou não recomendadas aos magistrados, em função da dignidade do cargo.

“E do ponto de vista jurídico, que é aqui mais importante, essa condenação deixa estampado que a dogmática penal nem sempre consegue barrar, pelo controle dos meios, os fins que movem determinadas agências penais, a despeito dos princípios constitucionais formalmente vigentes. Nesse contexto, o direito penal de autor é a regra consolidada dessa democracia de ocasião e suas decisões judiciais “sui generis”. Resta saber como os Tribunais que aguardam esse processo vão lidar com tamanho quiproquó.”

NO LINK ABAIXO, A ÍNTEGRA DO ENSAIO DE MAURICIO STEGEMANN DIETER E JACSON ZILIO, com as notas de rodapé escritas por eles:

 

 

 

“QUID PRO QUO” SEM “QUID” BREVE ANÁLISE DE UMA SENTENÇA “SUI GENERIS”

Mauricio Stegemann Dieter e Jacson Zilio

Introdução

Diante de escândalos do mundo jurídico a regra, hoje, é chegar tarde: a velocidade na qual circulam as comunicações impede maiores reflexões e exige dos teóricos posições, com sorte, prêt-à-porter.

Não foi diferente no caso da sentença mais esperada e previsível do ano. Várias opiniões, todas apressadas e mais ou menos corretas, já foram expostas nos diferentes meios de comunicação, de massa ou alternativos.346 Seguindo a polarização e avidez que marcam a atual cena política, a essa hora tanto defensores quanto detratores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já estão devidamente abastecidos de munição para o enaltecimento ou descrédito da decisão assinada pelo juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, um pouco antes das duas da tarde da quarta-feira, 12 de julho de 2017.

Agora, ânimos um pouco menos acirrados, a proposta é passar aspectos da controversa decisão pelo pente fino de uma análise jurídico-penal, de natureza essencialmente técnica, tentando resgatar alguma objetividade para uma discussão qualificada. Objetivo, entretanto, que não se realiza sem assumir posição, pois difícil ignorar que essa sentença também coloca em jogo, sem qualquer exagero, o futuro do país, notadamente quando se projetam, no horizonte, sombras verdadeiramente autoritárias, oriundas da noite obscurantista de um passado ditatorial recente.

O tamanho importa

Antes de enfrentar o mérito, contudo, do ponto de vista meramente quantitativo, é preciso reconhecer que se trata de uma peça incomum por sua extensão; com 216 páginas e 962 parágrafos, contrasta com a absoluta maioria das decisões judiciais que, Brasil à fora, absolvem ou condenam centenas de pessoas diuturnamente.

Uma conhecida estimativa, de base oficial, revela que 89% das condenações que mandam homens à prisão referem-se a apenas oito crimes, a maior parte deles (51%) praticados sem violência ou grave ameaça.347 Essas decisões coloquiais, como podem atestar os defensores públicos, frequentemente não passam de 15 folhas, são recheadas de chavões e fórmulas vazias e contam com redação marcada por frequentes erros de concordância, a indicar o pródigo uso de mecanismos como “auto-texto” e “copiar/colar”, praxe no requentado exercício de punir: são sentenças tão pobres em número páginas e técnica quanto seus destinatários preferenciais em termos de renda. No cotidiano forense das manifestações judiciais em matéria criminal, usualmente e com as honrosas exceções de sempre, há automação no atacado e cuidado apenas no varejo. Nada, enfim, remotamente parecido com a infindável ladainha que subtraiu a atenção dos criminalistas nos últimos dias, cuja maior preocupação é justificar a si mesma e não, propriamente, acertar o caso penal do processo.348

O tempo necessário para redigir algo desse insólito porte revela quão pueril é a ingênua expectativa legal de que os juízes sentam, eles próprios, em frente ao computador pra redigirem integralmente suas sentenças, do relatório à dosimetria.349 Fora dessa ilusão, é fácil perceber que se está diante de uma peça montada aos poucos, antes do fim da instrução, em torno de um já consolidado bloco condenatório, ali posto desde o recebimento da denúncia – ou, talvez, mesmo antes, como especulam os partidários do réu. De vantajoso, ao menos, apenas o fato de que o amplo elogio corporativista a esse catatau proíbe que juízes reclamem do tamanho das alegações finais apresentadas por advogados e defensores.

Para encerrar, no que é permitido dizer a partir do volume que salta aos olhos, a longa sentença confirma o mantra de que “escrever pouco é escrever bem”. Em elogio ao adágio, mais não será preciso dizer e parte-se, com isso, do continente ao conteúdo.

A corrupção da lei

A hipótese acusatória contra Luiz Inácio Lula da Silva é bastante simples: no final de 2009 ele teria agenciado junto à OAS, por meio dos Srs. Paulo Okamotto e João Vaccari Neto, um “upgrade” no apartamento que ele e sua esposa estavam financiando na praia do Guarujá/SP. Esse “upgrade” consistiria na entrega de uma unidade maior, no último andar, decorada e mobiliada às expensas da empreiteira, valendo-se de uma parte do dinheiro destinado ao Partido dos Trabalhadores a título de propina, como contrapartida por três contratos de consórcios integrados pela empresa com a Petrobrás.

Aceitas com as devidas reservas as versões das testemunhas de acusação, tudo indica que o que aconteceu foi mesmo algo próximo a isso. Especialmente se validadas as declarações do presidente da OAS, José Adelmario Pinheiro Filho, mais conhecido como Leo Pinheiro, elogiado pelo julgador por sua estranha “colaboração informal” e merecedor de mais de 20 páginas de minucioso, cansativo e impotente detalhamento.

O problema, para a sentença, é que essa história é, por si só, insuficiente tanto para uma adequação ao tipo legal de corrupção passiva quanto para o de lavagem de dinheiro contra o ex-presidente, e não é preciso ser muito letrado para compreendê-lo.

No princípio, são os verbos

A situação típica do artigo 317 do CP tem por ações nucleares receber, solicitar ou aceitar. Estas, por sua vez, referem-se a uma vantagem indevida imediata ou potencial, definida como condição para o exercício de alguma atribuição funcional. Para caracterização primária da tipicidade objetiva, portanto, é necessário demonstrar que o acusado tenha efetivamente recebido, solicitado ou aceito uma vantagem ou sua promessa, para fins de fazer ou deixar de fazer algo indevidamente, caracterizando a troca de “um favor por outro”, o tal e famoso “quid pro quo”.

Por que isso não se concretiza, no caso? Analisem-se as hipóteses separadamente.

Pode-se descartar, de plano, o recebimento, porque o ex-presidente jamais poderia receber algo que sequer estava concluído, sendo-lhe impossível exercer qualquer uma das dimensões elementares do direito de propriedade – usar, gozar, fruir e dispor – sobre o imóvel. Em particular, quanto a esse ponto, espanta aversão do magistrado pela disciplina dos direitos reais, que reduz à frivolidade. Seja como for, não há dúvida possível sobre a afirmação: se não por força do direito civil, que o magistrado solenemente despreza, pela pura força da lógica, o ex-presidente jamais recebeu o apartamento.

Diferente é a perspectiva da imputação que gira em torno da solicitação ou da aceitação, que não fracassam por falta de lógica, mas de evidência.

Pois não há, como a sentença é obrigada a admitir de forma velada, prova de que o ex- presidente tenha de fato solicitado à OAS esse “upgrade”, seja pessoalmente, seja por meio de outrem. Ao que tudo indica, a crença geral entre os membros da OAS envolvidos no caso é de que o apartamento realmente seria destinado ao ex-presidente e sua família; mas não há nada – rigorosamente nada – na sentença a comprovar que ele realmente teria pedido essa específica vantagem para si ou para outrem, direta ou indiretamente. A notícia de que seria dele o tríplex é, no fundo, apenas isso: um ouvir dizer, em torno da qual muitos atuaram, mas que jamais foi comprovado, nem mesmo pelos que se encarregaram de levar a obra adiante.350

Quanto ao aceitar, a acusação é particularmente inverossímil; o ex-presidente e sua esposa mostram pouco ou nenhum interesse pelo novo apartamento e sua transformação e, embora possam ter em algum momento considerado a aquisição do tríplex rabiscando uma proposta jamais apresentada, a conduta da família é incompatível com a expectativa real de desfrutar dessa vantagem imobiliária no futuro.351 Evidentemente, além de não caracterizar o tipo objetivo, tal comportamento deveria servir para excluir o dolo, mas essa opção não foi levada a sério.

Como se vê, na falta de ações substanciais atribuíveis ao presidente, a acusação paira no ar de maneira frustrante para quem a formulou, faltando-lhe densidade.

Sem se fazer de rogada, a decisão condenatória aterra essa insustentável leveza atribuindo-lhe o peso de uma crença firme na culpa. A inversão não é exatamente sutil: a falta de um pedido expresso é considerada parte da estratégia de ocultação e a apática indiferença pelo bem é vista como outra evidência do enorme conluio elaborado pelos que vivem a certeza de desfrutar o imóvel futuramente. A sentença, então, claramente decide a dúvida em prejuízo ao réu, violando em grande estilo a determinação constitucional e despudoradamente promovendo a mentira de que a defesa tem por obrigação a demonstração inequívoca de suas alegações – tese muito ao gosto dos inquisidores modernos, em que pese antijurídica.

“Fi-lo porque qui-lo”352

Mesmo que uma cansativa retórica pudesse preencher o vácuo da lógica e das provas relacionadas aos verbos do tipo, e não foi por falta de tentar, não se encontram na sentença sequer indícios de uma retribuição específica por parte do então presidente em troca do apartamento superior, definido como vantagem.

De fato, não há qualquer prova de que o tenha feito ou omitido algo à frente do Executivo Federal a fim de beneficiar a OAS – e muito menos em troca do benefício em discussão. Nem nomeação de diretores, nem direção da política econômica, nem nada.

A especulação de que, com isso, uma empreiteira conquistaria genericamente os bons favores da presidência é, por óbvio, insuficiente para caracterizar corrupção nos termos da lei e a condenação, apesar de obstinado esforço, não consegue ignorar essa falta. Trata, por isso mesmo, de dribla-la alegando que o pagamento “em razão” do cargo público já seria suficiente para caracterização do crime de corrupção passiva, apesar da vasta e pacífica literatura e jurisprudência acumuladas sobre o tema, a exigirem que a vantagem se refira a algo concreto, remetendo à célebre expressão ato de ofício.353 Não basta ser presidente, portanto: é preciso fazer algo vinculado a essa posição em favor do corruptor para caracterizar o tipo objetivo do crime.

Deixar de exigi-lo, a propósito, além de grave inovação contra a exigência de lei certa imposta pelo princípio da legalidade, também causaria, pela desigualdade, um problema político-criminal: considerando que a corrupção ativa, prevista no art. 333 do CP, exige expressamente que a oferta ou promessa de vantagem indevida se dirija à prática, omissão ou retardo de ato de ofício, apenas o funcionário público seria punível por corrupção no Brasil, excluído o particular da incriminação por ser incapaz de realiza-lo. Não por outro motivo, com acerto, a doutrina caracteriza a corrupção passiva como mercancia de atos concretos que possam ser praticados, precisamente, em função da ocupação de determinadas ocupações públicas.

Para dobrar essa esquina, como antecipado, a sentença lançou outra novidade: a referência a jurisprudência ianque sem qualquer mediação, vulgarizando o direito comparado em comparação de ocasião.

Ora, se analogia em prejuízo ao acusado é proibida pela lei (“nullum crimen, nulla poena sine lege stricta”), então o que dizer dessa inédita analogia “contra legem” e “in malam partem” a partir de precedentes estrangeiros sem qualquer contextualização? Pois foi exatamente o que fez a sentença. Pior: sequer atentou para o fato de que o crime de corrupção tem, nos dois países, definições bastante distintas, além de convenientemente ocultar que, em alguns dos julgamentos citados, os crimes imputados eram diferentes, o que impediria a equivocada comparação direta.354 Em uma avaliação rigorosa, conduzida por professores intelectualmente honestos, o manejo desse tipo de artifício em trabalho acadêmico teria como resposta, na melhor das hipóteses, uma severa admoestação e, na pior, uma reprovação sumária. Tratando- se de manifestação judicial, infelizmente, a correição técnica passa longe e não incomoda a maioria dos Tribunais, tornando-se mera curiosidade alegórica, exemplo de (falsa) erudição importada.

Em síntese, a conclusão simplista, em oposição à lei e partidária da acusação que justificou a aplicação de pena foi a seguinte: a “mera ocupação” do cargo de presidente já é, em si mesma, uma contrapartida pela aceitação da expectativa de vantagem, e nada disso requer prova cabal para caracterizar corrupção passiva no ordenamento jurídico brasileiro.

Pura presunção, suficiente apenas para os que se satisfazem com a própria convicção: o primeiro “quid pro quo” sem “quid” da história nacional.

A sorte dos que vão com muita sede ao pote

Volte-se à advocacia do diabo: então a OAS realmente deu um “upgrade” para o apartamento que estava sendo financiado pelo Sr. Luiz Inácio e sua esposa, na esperança de que a expectativa de desfrute futuro do imóvel o mantivesse soprando – ainda que sem ser mais presidente – bons ventos em direção às velas da empreiteira. E, apesar do que prevê a figura típica definida pelo Código Penal, chame-se isso de corrupção passiva. Seria, então, possível uma condenação?

A resposta é negativa. Dessa vez, por conta da natureza jurídica do crime.

Pois, para a imensa maioria dos penalistas, a corrupção é classificada como um tipo de mera atividade (ou formal). Por que isso é importante? Ao contrário dos chamados crimes de resultado, os de simples atividade não admitem a forma tentada; em outras palavras, não existe a possibilidade jurídica de tentativa de corrupção: ou o agente público foi comprado, ou não foi.

Consequentemente, o lapso temporal entre o solicitar ou aceitar vantagem indevida e, de fato, recebê-la e dela usufruir, caracteriza o que convencionalmente se chama nos manuais de exaurimento: a situação típica já está totalmente caracterizada, pouco importa a vantagem ser realmente aproveitada, o crime está consumado.

A implicação dessa compreensão é clara: mesmo na pior das hipóteses – e ao arrepio da lei – o que se descobriu foi a evidência de atos preparatórios para uma possível corrupção futura, que na ausência de solicitação ou aceitação inequívoca só iria se materializar com o recebimento, nunca efetivado – talvez, justamente por conta do açodamento da investigação, o que não deixa de ser irônico. Sem, ao menos, início da execução, a punição é proibida, ainda que tenha existido uma articulação coletiva para tanto, como reza a cartilha dogmática a partir do artigo 31 do Código Penal.

À luz desses esclarecimentos seria preciso, por consequência, inventar uma corrupção “sui generis” para poder condenar o ex-presidente, correto?

Foi exatamente o que fez a sentença: legislou para a ocasião e incluiu no ordenamento jurídico brasileiro o pomposamente chamado crime de corrupção complexo, até então desconhecido das leis e da literatura técnica de tradição continental. Um delito sob medida, caracterizado por diferentes atos e tempos e no qual, ao contrário da inconveniente definição do Código Penal, o tipo de injusto não se esgota na ação, viabilizando a censura desejada. Crimes de mentira, condenações de verdade.

Por isso parece suficiente, a título de conclusão provisória, dizer sobre a correção da sentença em relação à suposta corrupção passiva o seguinte: o Sr. Luiz Inácio foi condenado em função de um bem que nunca recebeu, nem foi provado ter solicitado ou aceitado, pago com dinheiro de não se sabe onde e em troca de nada em particular.

Lato ou stricto sensu, condenado por uma corrupção atípica.

Lavagem a seco

O sobressalto determinado pela destruição de qualquer parâmetro legal na imputação de corrupção passiva não esgota o alarmante potencial da sentença.

É que a condenação do ex-presidente incluiu, ainda, a lavagem de dinheiro, em concurso material.

Mas visto antes que, seja por força da lógica ou do direito civil, nunca houve recebimento do imóvel, o quê, exatamente, poderia o ex-presidente “lavar”, no sentido de incluir no sistema regular de circulação de bens a fim de ocultar a origem ilícita do apartamento?

Se, a partir do artigo 1° da Lei 9613/98, sabe-se que há explícita exigência de que o bem tenha origem em prévia infração penal (crime ou contravenção), então isso pressupõe ao menos duas ações. Primeiro, a posse de um bem originário de uma ação penalmente ilícita – o que, no caso, não ocorreu. Segundo, a regularização desse bem por meio de artifícios, que escondam sua proveniência e permitam seu uso.

A decisão, nesse ponto, apela genericamente para a corrupção na Petrobras, sustentando que o dinheiro da OAS para a mudança e decoração do apartamento na cobertura que seria do ex-presidente veio de um “propinoduto” qualquer. Isso, entretanto, não passa o umbral da especulação, pois não há qualquer demonstração desse vício de origem, ausente o rastreio do dinheiro destinado a esse fim pela empresa. Os valores tanto podem ter vindo desse caixa escuso quanto da conta regular de pessoa física ou jurídica, simplesmente não há como saber.

Para, novamente, tentar contornar esse óbice fático, a decisão alega que é o próprio apartamento que “lava” a corrupção “sui generis” do réu. O problema, nesta hipótese, é não ser admissível que uma só ação – o “upgrade” da unidade da Bancoop financiada pelo ex-presidente e sua esposa pela OAS – atenda simultaneamente às funções de “lavar” e “ser lavado”.

E mesmo que o imóvel tenha sido uma tentativa da empresa de “lavar dinheiro” destinado ao partido do ex-presidente, comprando com dinheiro “sujo” um apartamento que eventualmente lhe seria entregue, essa acusação nunca poderia ser imputada ao próprio, mas exclusivamente à OAS, única autora desse suposto delito.

Sem esquecer que, no limite, o que se insinuava em relação ao crime anterior de corrupção era a aceitação de uma expectativa de vantagem – ainda que a troco de nada em particular – por parte do antigo líder do Executivo nacional. E, de ser assim, descobriríamos a existência de uma nova e misteriosa figura típica da “lavagem de bens em haver”, permitindo uma releitura processual penal do célebre filme de Anselmo Duarte, intitulado “o lavador de promessas”. Cômico, não fosse trágico: sem tirar nem pôr, nesses termos um cidadão brasileiro foi condenado a pena de 9 anos e seis meses de reclusão, em regime fechado.

Para (literalmente) cúmulo, a excêntrica condenação dessa “dupla de um” é apresentada como se fosse concurso material, embora a definição legal do artigo 69 do Código Penal exija, com toda a clareza, a prática de múltiplos crimes por meio de “mais de uma ação ou omissão”.

Assim, entre outros prodígios já denunciados, também descobrimos na sentença que o zero não é parcela neutra na adição de pena. Pois, ainda que fosse comprovado que o acusado era o real possuidor do apartamento, o uso desse bem não poderia constituir sua própria “lavagem”, mas o mero exaurimento da corrupção, desfrutando-se do apartamento em troca de um ato de ofício praticado pelo então presidente (tudo isso inexistente, vale lembrar).

Em outras e mais simples palavras, ainda que tudo o que o Ministério Público tenha dito fosse verdade, isso não poderia caracterizar dois crimes, porque usar um apartamento recebido como contrapartida por uma ação em função de cargo público não caracteriza novo crime, mas post-factum impunível do próprio crime de corrupção passiva. A razão é simples: sempre existe unidade de ação naqueles tipos que abarcam uma unidade de valoração.355 Na verdade, o caso não representa um concurso de crimes, mas sim uma forma de interpretação de tipos penais (conflito aparente de leis penais). O critério do antefato e pós-fato copunidos estão em relação de consunção com o fato principal. São, portanto, punidos em conjunto com o fato principal.356

Mas, na busca do objetivo final, quem se importa com detalhes?

Um caso de direito penal de autor: materialidade por autoria

Feita a análise das imputações típicas, privilegiando suas dimensões objetivas, outra parte da sentença que chama especialmente a atenção é o momento de aplicação da pena.

Regimes autoritários tem uma predileção pelo chamado direito penal de autor (Täterstrafrecht), em geral caracterizado pela legitimação do poder de punir por meio de tipificação de características – físicas, sociais, políticas, ideológicas – de determinados autores. Trata-se, grosso modo, de um sistema fundado na personalidade, no ânimo antissocial do autor.357

Por outro lado, o chamado direito penal de fato, afim aos regimes democráticos, caracteriza-se pela descrição de comportamentos que podem, se realizados, ofender bens jurídicos vitais ao indivíduo e à sociedade. O princípio constitucional nullum crimen, nulla poena sine lege dá primazia ao direito penal de fato, pois os tipos penais devem descrever ações para serem precisos.

Tanto um quanto outro repercutem no campo da tipicidade e da culpabilidade. A tipicidade de direito penal de autor pretende oferecer uma teoria criminológica de tipos de autor e, com isso, abarcar determinados grupos de indivíduos (Lehren vom kriminologischen Täter-typ), enquanto que a tipicidade de direito penal de fato alcança comportamentos proibitivos possíveis de realização por todo corpo social imputável. A culpabilidade de direito penal de autor preocupa-se com a reprovação oriunda da condução da vida (Lebensführungsschuld), ao passo que a culpabilidade de direito penal de fato interessa-se pela reprovação pelo tipo de injusto concretamente realizado. Portanto, um reprova o autor pelo que ele é; outro, pelo que ele efetivamente fez.

Isso tudo, porém, não significa que as manifestações autoritárias do direito penal de autor são referidas apenas aos elementos jurídicos do delito. O momento de determinação da pena é, certamente, muito revelador do nítido autoritarismo do sistema de direito penal de autor, entre outras coisas porque (a) reforça a censurabilidade do indivíduo por má condução pretérita da vida, (b) dá ampla margem de discricionariedade ao julgador e (c) consume o princípio da liberdade por ideias utilitaristas (segurança, defesa social etc.).

No Brasil, apesar da reforma realizada em 1984 na Parte Geral do CP, o arbítrio na determinação da pena continuou imenso. O art. 59 do CP determina que o juiz estabelecerá, dentro dos limites previstos, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, a quantidade de pena aplicável, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Esse dispositivo não apenas permitiu a incorporação do direito penal de autor, como também a consolidação da jurisprudência no sentido do livre poder judicial na determinação da pena, um verdadeiro drama na vida de qualquer autor condenado: lei e jurisprudência incorporaram elementos jurídicos indeterminados (personalidade, por exemplo) e dados desvinculados do fato cometido (conduta social, antecedentes criminais e reincidência, por exemplo).

A única leitura democrática possível é extrair desse dispositivo dois juízos fundamentais para determinação da pena: de um lado, o juízo de necessidade, pois uma pena desnecessária para fim preventivo não pode ser imposta; de outro lado, um juízo de suficiência, complementar ao juízo de necessidade, inferido da relação entre a lesão de bem jurídico, a conduta concreta do agente, sua capacidade de motivação e a consequência jurídica a ser imposta. Ambos juízos, então, compõem um juízo maior de culpabilidade pelo fato como limite da pena: a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade.

Dentre as circunstâncias de ponderação previstas no art. 59 do CP, que devem ser submetidas ao crivo da necessidade e da proporcionalidade e que servem como caminho do processo de determinação da pena, a culpabilidade pelo tipo de injusto – que não é a mesma que compõe o delito, porque do contrário se estaria violando o princípio ne bis in idem – é a referência essencial como fator de individualização da pena. Mas cuidado: culpabilidade aqui é dado de conteúdo empírico que retrata a capacidade de motivação do agente para o fato por ele realizado, em face dos apelos normativos da ordem jurídica aos quais tivera acesso, ou seja, acessibilidade aos apelos de proibição ou de determinação. Em outras palavras: um critério em função do que o sujeito poderia efetivamente fazer ou não fazer, quando submetido a uma norma vinculante de sua conduta. Consequentemente, os demais critérios complementares do art. 59 do CP devem necessariamente estar vinculados ao fato (logo, estão excluídos os critérios dissociados do fato, como fatores morais, antecedentes criminais, conduta social, personalidade, por exemplo) e só podem ser considerados em favor do réu, como esclarece Juarez TAVARES.358

Apesar dessas balizas possíveis de limitação do arbítrio, o autoritarismo penal consegue contorná-las para materializar um perfeito exemplo de direito penal de autor. Embora isso se reproduza no cotidiano da atividade judicial do sistema penal brasileiro, o exemplo da sentença proferida no caso do tríplex é paradigmático.

Como visto, Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado pelo delito de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Entre os oitos indicativos previstos no art. 59 do CP, quatro não foram valorados (maus antecedentes, conduta social, motivos e comportamento da vítima). Foram valoradas negativamente as circunstâncias, as consequências, a personalidade e a culpabilidade.

Todas elas, contudo, foram valoradas de forma errada.

As circunstâncias foram entendidas negativamente porque “a prática do crime (de) corrupção envolveu a destinação de dezesseis milhões de reais a agentes políticos do Partido dos Trabalhadores, um valor muito expressivo. Além disso, o crime foi praticado em um esquema criminoso mais amplo no qual o pagamento de propinas havia se tornado rotina”. Na mesma linha, as consequências seriam desfavoráveis “pois o custo da propina foi repassado à Petrobrás, através da cobrança de preço superior à estimativa, aliás propiciado pela corrupção, com o que a estatal ainda arcou com o prejuízo no valor equivalente”.

Estes pontos deveriam ser analisados na relação entre culpabilidade e fato concretamente realizado. A questão aqui é: avaliação da gravidade do fato como lesão ao bem jurídico e consequências do delito, ou seja, quanto maior a gravidade e as consequências abrangidas pelo âmbito de proteção da norma, maior a culpabilidade. Caberia, portanto, cotejar todos aqueles dados que envolvem o processo de desenvolvimento da ação, as facilidades e dificuldades da execução, os fatores externos no processo de produção do resultado (comportamento da vítima, de terceiros ou das autoridades), a extensão do dano, o valor dos bens lesados, a reparação como forma de limite de sua extensão, a duração do ilícito, a divisão de tarefas na execução, as relações objetivas do autor com a vítima, etc., sempre que esses fatores não configurarem, em razão do princípio da proibição de dupla valoração, circunstâncias determinadas pela lei (agravantes e atenuantes). Portanto, o valor expressivo da corrupção pode sim ser valorado na determinação da pena, mas desde que se refira à relação entre culpabilidade e fato concretamente realizado. O problema da sentença é que valorou duplamente esse “valor muito expressivo” nas circunstâncias e nas consequências, pior ainda, nas duas situações num evidente rompimento na relação culpabilidade-fato concretamente realizado, pois os valores não foram considerados aqueles da imputação. Com isso se afrontam os princípios da proibição da dupla valoração e da culpabilidade.

Além do mais, as consequências fogem dos limites possíveis de conhecimento do agente. Isso é inadmissível e constitui uma forma de responsabilidade objetiva. As consequências possíveis de valoração, por óbvio, são apenas aquelas relacionadas ao tipo de injusto imputado, das quais o agente tenha pleno conhecimento ou, no mínimo, já apareciam como previsíveis (verschuldete Auswirkungen der Tat). FRISCH exige corretamente que as consequências estejam abrangidas pelo âmbito de proteção da norma.359 Não se incluem, portanto, as consequências externas ao tipo de injusto não conhecidas pelo agente e não abarcadas nos fins protetivos da norma violada, tais como o dano psicológico sofrido pelas vítimas de delitos de roubo, à bancarrota e, depois, o suicídio da vítima de estelionato ou até os danos à saúde e morte dos consumidores de drogas.360

A sentença também considerou a culpabilidade elevada.361 Errou mais uma vez. Não existe culpabilidade pela posição social ou política do autor. O que a sentença faz é confundir juízo de reprovação pelo tipo de injusto realizado (elemento do delito) com juízos de necessidade e suficiência (diretrizes de fixação da pena). Na verdade, o máximo que se poderia fazer aqui é avaliar, também dentro da relação entre culpabilidade e fato, a autonomia do agente, que envolve contextos da vida consistentes na verificação das dificuldades concretas individuais ou sociais enfrentadas para realizar o fato apesar dos apelos normativos da ordem jurídica, isto é, quanto maior a autonomia, maior a culpabilidade. Isso porque fatores concretos da vida, como os decorrentes de relacionamentos pessoais e familiares, de emprego ou de desemprego, de riqueza ou de miséria, de formação educacional ou de despreparo, de poder e de submissão, influem diretamente na autonomia. Mas, em se tratando de alguém sem nenhuma dificuldade de exercer sua autonomia, de seguir sua vida normal sem realizar o fato, a culpabilidade deveria ser normal, sem necessidade de ser diminuta, é dizer, não necessitaria uma diminuição aquém dos limites fixados.

Do fato não se extrai, ademais, condições externas que dificultassem o exercício da autonomia, tais como “a coação individual ou social, a relação de dependência do autor em relação a outrem, quer como funcionário, empregado ou simplesmente companheiro, ou a falta de outro meio institucional que lhe possibilitasse a realização de um resultado juridicamente adequado”362. Logo, não há nenhuma razão para entender que a simples posição de poder – social ou político – autorizaria uma culpabilidade maior na fixação da pena. Essa forma de proceder viola o próprio princípio da culpabilidade pelo fato, abrindo espaço para o ingresso do direito penal de autor.

Por fim, quando a sentença fala de “especial reprovação” como critério para determinação da pena, revela adotar uma inadmissível teoria unificada ou mista da pena, com prevalência da ideia de retribuição. Entretanto, essa reprovação mencionada no art. 59 do CP apenas significa que a pena aplicada deva ser proporcional ao dano ou ao perigo ao bem jurídico. A ideia de retribuição, portanto, está excluída do processo de determinação da pena, simplesmente por conta da incompatibilidade de ordem constitucional, já que é “inadmissível que, em um Estado de direito democrático, se pudesse associar à pena uma natureza puramente repressiva sem qualquer utilidade”.363 A prevenção do crime, portanto, é o único fundamento possível para configurar os juízos de necessidade e suficiência da pena.

Algumas conclusões possíveis

Uma análise técnica logo encontra na sentença, em sua quase insuportável extensão, problemas dogmáticos de primeira ordem e todos tão evidentes que dispensam maior fundamentação teórica.

Também revela que a decisão pretendeu, pelo cansaço, contornar os óbices que impediam uma condenação com inovações contrárias à lei, em nome de uma messiânica luta contra a corrupção. Algo louvável, talvez, não fosse o fato de que pressupõe, sem limite, o sacrifício da liberdade humana, assegurada pelo respeito aos direitos fundamentais ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa, ao juiz natural, à correlação entre acusação e sentença, à proteção à intimidade e vida privada, à presunção de inocência, à vedação de provas ilícitas etc.

O Estado de Direito caracteriza-se pelo poder legal de controlar pulsões punitivas utilitaristas gerais e individuais.

A sentença analisada, contudo, confirma que nem sempre isso é possível.

Do ponto de vista político, ao menos, a condenação é o começo de uma despedida do julgador: com seu protagonismo encerrado, sobrarão os resíduos dessa fama que não parece ter sido de todo indesejada, especialmente diante do aberto ativismo na defesa da causa, de ser referente jurídico informal de parlamentares, de promover iniciativas legislativas, defender a própria atuação em artigos de opinião e convocar e orientar partidários da operação em manifestações, entre outras atividades proibidas ou não recomendadas aos magistrados, em função da dignidade do cargo.

E do ponto de vista jurídico, que é aqui mais importante, essa condenação deixa estampado que a dogmática penal nem sempre consegue barrar, pelo controle dos meios, os fins que movem determinadas agências penais, a despeito dos princípios constitucionais formalmente vigentes. Nesse contexto, o direito penal de autor é a regra consolidada dessa democracia de ocasião e suas decisões judiciais “sui generis”.

Resta saber como os Tribunais que aguardam esse processo vão lidar com tamanho quiproquó.

 

NOTAS

346 No equilíbrio possível entre imediaticidade e qualidade, poucas opiniões se destacaram tanto quanto a do competente e conhecido criminalista Nelio MACHADO (“Críticas à defesa do ex-presidente Lula mostram parcialidade de Moro”, disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jul-12/nelio-machado- sentenca-lula-mostra-parcialidade-moro).

347 Especialmente meras subtrações e o comércio de substâncias que o Estado diz que você não pode consumir. Ver os dados consolidados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), de dezembro de 2014, publicação oficial do Ministério da Justiça.

348 A escolha da palavra ladainha aproveita sua popular conotação pejorativa para assinalar o recalcitrante lamento do juiz da causa com o comportamento dos defensores e alguns de seus superiores. Primeiro, mostra bastante ressentimento em relação ao puxão de orelha público que recebeu do falecido Ministro Teori Zavascki, construindo ao final uma narrativa em busca de redenção parcial, sem sucesso. Segundo, queixa-se das constantes críticas do uso instrumental da mídia para levar adiante o processo, o que considera, equivocadamente, ser uma mera extensão do direito à liberdade de expressão. Terceiro, justifica não só a dolosa violação de sigilo telefônico da presidente da República como simples “erro” de sua parte na consecução das melhores intenções (podemos apenas supor como “interpretaria” tal erro um juiz com as mesmas características no julgamento desse fato), como rejeita as alegações de franca ilegalidade no grampo telefônico que determinou contra o advogado Roberto Teixeira, apologeticamente reduzindo esse absurdo a uma falta menor provocada pelo excesso de trabalho. Quarto, em tom quase infantil, censura os advogados criminalistas – exceto os adeptos da delação e assistente de acusação, por motivos tão pedestres que não valem a tinta – ao mencionar repetidas vezes a suposta “inadequação” das diversas alegações defensivas e reclamar da “animosidade” e “hostilidade” dos advogados, de quem o Juízo parecia esperar, ao que tudo indica, uma “docilidade útil” que só deve ser esperada dos procuradores de delatores, já que a advocacia, ensina Sobral Pinto, não é profissão para covardes. Talvez alguém tão suscetível ao contraditório devesse repensar a magistratura como carreira, pois o incômodo revelado mostra incompatibilidade com as exigências essenciais ao cargo. Nesse sentido, é importante enaltecer a coragem dos advogados de verdade que atuaram no caso, em especial a combativa posição de Juarez Cirino dos Santos, referido de modo negativo na sentença – o que, em todo caso, deve ser motivo de orgulho, porque sinaliza o cumprimento da missão constitucional contra o arbítrio.

349 No caso seria improvável, para dizer o mínimo, de nos filiarmos ao que seria a mera formalidade do registro informático das atividades do Juízo. Pois consta que os autos foram conclusos para sentença na terça-feira dia 11 de julho de 2017, exatamente às 16:17:21. Menos de 24 horas depois, às 13:52:56 da quarta-feira, dia 12, o juiz assina digitalmente a sentença condenatória, incluída no processo às 13:54:07. Mesmo de supor um espartano sono de 5 horas entre um dia e outro, a conta de trabalho ininterrupto é de um minuto por parágrafo de análise, transcrições à parte, ou seja, virtualmente impossível. Em outro sentido, de consideramos o registro do evento 939 do processo, que assinala “autos com juiz para sentença” às 12:45:23 do dia 21 de junho – um dia após as apresentações dos Memoriais escritos das Alegações Finais das defesas – há um espaço considerável de 22 dias, que obriga a escrita de dez páginas por dia; sem ser irrealizável, é bastante puxado e, de todo, incompatível com a jornada da famosa Vara responsável pela “Lavajato” (sic).

350 Lembrando que a compra dos empreendimentos imobiliários da Bancoop pela OAS, entre os quais o prédio no Guarujá onde o ex-presidente tinha adquirido cotas para aquisição de uma unidade, foi precedida de uma avaliação técnica que considerou positivo o investimento, só depois autorizada pelo presidente da empresa. A aquisição, portanto, estava comercialmente respaldada, independentemente da propriedade potencial do bem por quem quer que seja.

351 Lula teria visitado a unidade apenas uma vez, sem maior interesse pelo imóvel. Mais: suas afirmações no ato do interrogatório, de que o imóvel não lhe agradava e de que não tinha a menor pretensão de frequentar a praia do Guarujá, por questões pessoais, foram sumariamente desconsideradas, embora bastante críveis. Ainda, é interessante notar que a “personalização” do apartamento foi, de todo, impessoal: em nenhum momento, nem ele nem a ex-primeira-dama, participaram da elaboração ou opinaram sobre os caros projetos de decoração levado adiante pela OAS. Mas esse descaso não é, ao contrário de outras questões circunstanciais, objeto das ilações do julgador, que prefere conjecturar exclusivamente em desfavor ao acusado.

352 A frase “Fi-lo porque qui-lo” é atribuída ao ex-presidente Jânio Quadros, para reforçar a caricatura que dele se faz. Gramaticalmente o correto é “Fi-lo porque o quis”.

353 Situação análoga ao art. 333 do CP, no qual isso aparece de modo complementar, com todas as letras. Na jurisprudência sobre o tema, confira-se, por exemplo, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os seguintes processos: APn 307/DF, 2a Turma. Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 13/12/1994 e a famosíssima APn 470/MG. O juiz, por óbvio, não desconhece a jurisprudência, mas aqui deixou de lançar mão dos precedentes para seguir um caminho próprio – novamente, em detrimento à expectativa de liberdade do acusado.

354 A questão, como sabe qualquer estudioso honesto de direito comparado, é bastante mais complexa, e jamais poderia ter sido invocada como foi na sentença. Em todo caso, apenas para que não reste dúvida do que está em jogo: A “Hobbs Act” é uma lei federal de 1964 que somou ao “US Code” uma nova incriminação, a “extortion under color of official right”, incluída no parágrafo 1951. Ao contrário da definição de “bribery”, de extensa previsão no parágrafo 201, e que via de regra exige um “quid pro quo” explícito na transação, ainda que não efetivamente realizado pelo agente público. Assim, por exemplo, nos citados “US v. DiMasi” e “US v. Abbey”, estamos diante de acusações, entre outros crimes, de “extortion” e não “bribery”, o que já impediria uma assimilação teórica sem as devidas ressalvas. E, mesmo nesses caso, havia previsão do efetivo recebimento de dinheiro (o que sabidamente não houve no caso do triplex, a propósito), apenas dispensando-se uma contrapartida específica a justificar a oferta, razão pela qual, nessa hipótese, se dispensa o “quid pro quo”.

355 O que também acontece, por exemplo, nos delitos sexuais, de maus-tratos ou no tráfico de drogas (por meio da aquisição de drogas para venda posterior, sem que tenhamos aqui dois delitos).

356 Por exemplo, o dano na coisa furtada pelo ladrão não constitui delito de dano, mas sim um fato compreendido no conteúdo de injusto do furto, como parece desnecessário esclarecer para qualquer estudante ou bacharel em Direito.

357 STRATENWERTH, Günter, KUHLEN, Lothar, Strafrecht Allgemeiner Teil, München: Verlag Franz Vahlen, 2011, p. 32. Também, de forma bastante crítica, ROXIN, Claus, Strafrecht Allgemeiner Teil. Band I. Grundlangen. Der Aufbau der Verbrechenslehre. A. Auflage. München: Verlag C. H. Beck, pp. 178-189. O Código Penal alemão (StGB), tal como o brasileiro, ainda contém expressa influência do direito penal de autor: “§ 46 Grundsätze de Strafzumessung. Die Schuld des Täters ist Grundlage für die Zumessung der  Strafe. 2Die Wirkungen, die von der Strafe für das künftige Leben des Täters in der Gesellschaft zu erwarten sind, sind zu berücksichtigen. Bei der Zumessung wägt das Gericht die Umstände, die für und gegen den Täter sprechen, gegeneinander ab. Dabei kommen namentlich in Betracht: die Beweggründe und die Ziele des Täters, besonders auch rassistische, fremdenfeindliche oder sonstige menschenverachtende; die Gesinnung, die aus der Tat spricht, und der bei der Tat aufgewendete Wille; das Maß der Pflichtwidrigkeit; die Art der Ausführung und die verschuldeten Auswirkungen der Tat; das Vorleben des Täters, seine persönlichen und wirtschaftlichen Verhältnisse sowie; sein Verhalten nach der Tat, besonders sein Bemühen, den Schaden wiedergutzumachen, sowie das Bemühen des Täters, einen Ausgleich mit dem Verletzten zu erreichen. Umstände, die schon Merkmale des gesetzlichen Tatbestandes sind, dürfen nicht berücksichtigt werden.” Ao permitir ao juiz levar em conta a vida pretérita do autor, as circunstâncias pessoais e econômicas, o Código Penal alemão também permitiu influências do direito penal de autor na medição da pena (JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas, Lehrbuch des Strafrechts Allgemeiner Teil. Berlin: Duncker und Humblot, 1996, § 6, IIII, 2).

358 “Em qualquer caso, elementos subjetivos relacionados ao autor só podem ser invocados em seu prejuízo se tiverem influenciado, previamente, o desvalor da ação. Todos os demais fatores – como, as circunstâncias contidas no artigo 59 do CP – só devem ser usados em favor do autor. Fatores morais ou outros relacionados à suposta má conduta do autor são estranhos ao processo de individualização e devem, desse modo, ficar de fora de qualquer avaliação” (TAVARES, Juarez, Culpabilidade e individualização da pena, em Cem anos de reprovação: uma contribuição transdisciplinar para a crise da culpabilidade, Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 135).

359 ZStW 99 (1987, p. 754).

360 Confira-se, nesse sentido, por todos, TEIXEIRA, Adriano, Teoria da aplicação da pena. Fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

361 O argumento foi este: “O condenado recebeu vantagem indevida em decorrência do cargo de Presidente da República, ou seja, de mandatário maior. A responsabilidade de um Presidente da República é enorme e, por conseguinte, também a sua culpabilidade quando pratica crimes. Isso sem olvidar que o crime se insere em um contexto mais amplo, de um esquema de corrupção sistêmica na Petrobras e de uma relação espúria entre ele o Grupo OAS. Agiu, portanto, com culpabilidade extremada, o que também deve ser valorado negativamente. Tal vetorial também poderia ser enquadrada como negativa a título de personalidade. Considerando três vetoriais negativas, de especial reprovação, fixo, para o crime de corrupção passiva, pena de cinco anos de reclusão.”

362 TAVARES, Juarez, Culpabilidade e individualização da pena, p. 144.

363 TAVARES, Juarez, Culpabilidade e individualização da pena, p. 123.

Bibliografia

JESCHECK, Hans-Heinrich, WEIGEND, Thomas, Lehrbuch des Strafrechts Allgemeiner Teil. Berlin: Duncker und Humblot, 1996.

MACHADO, Nelio. Críticas à defesa do ex-presidente Lula mostram parcialidade de Moro. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-jul-12/nelio-machado-sentenca-lula-mostra-parcialidade-moro (Acesso em 21 de julho de 2017, às 15:37)

ROXIN, Claus, Strafrecht Allgemeiner Teil. Band I. Grundlangen. Der Aufbau der Verbrechenslehre. A. Auflage. München: Verlag C. H. Beck, 2006.

STRATENWERTH, Günter, KUHLEN, Lothar, Strafrecht Allgemeiner Teil, München: Verlag Franz Vahlen, 2011.

TAVARES, Juarez, Culpabilidade e individualização da pena, em Cem anos de reprovação: uma contribuição transdisciplinar para a crise da culpabilidade, Rio de Janeiro: Revan, 2011.

TEIXEIRA, Adriano, Teoria da aplicação da pena. Fundamentos de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

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