O golpe, que afastou a presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, usurpou a soberania do povo brasileiro, instalando uma crise de representatividade sem precedentes. Também aprofundou a crise econômica, por meio da implementação de uma série de medidas conjunturais ortodoxas de ajustes e de medidas desestruturantes em muitas áreas, como educação, saúde, previdência, trabalhistas, entre outras.
Além disso, alinhavado com um processo de investigação da corrupção, especialmente relacionado ao caixa 2 e ao financiamento de campanhas eleitorais, retirou a credibilidade de parte importante da classe política. Com isso, o golpe transferiu a tomada de decisões do sistema de representação para um consórcio formado pelo grande capital financeiro, importantes veículos oligopolizados da mídia, procuradores, policiais e juízes partidarizados.
No mundo inteiro, a superação da crise política e, por consequência, da crise econômica passa pela capacidade dos sistemas de representação recapturarem a prerrogativa de tomar decisões relevantes, efetivas e inovadoras, não só no campo econômico, como em todas as áreas. Ou seja, implica em devolver aos estados nacionais a capacidade decisória que foi transferida para o capital financeiro internacional e, necessariamente, por devolver ao voto popular a capacidade efetiva de decidir os destinos do país.
Em outras palavras, a política tem de recuperar a capacidade de criar uma “identidade” popular que consiga se antepor, numa disputa democrática real, ao establishment do capitalismo financeiro global e desregulamentado. Isso é: a política real tem de substituir o vazio de escolhas da “pós-política” e a democracia tem de substituir a “pós-democracia” destituída de efetiva soberania popular.
No Brasil, esse processo de recuperação da política e da soberania popular, única forma de superar a crise, tem caráter emergencial e exige algumas precondições: derrotar politicamente o golpe, evitando o avanço do desmonte das políticas sociais, do estado e a desestruturação do mercado de trabalho, e evitar que a nova fase do golpe impeça a candidatura vitoriosa de Lula, que lidera isoladamente todas as pesquisas, em todos os cenários eleitorais.
Mas, o golpe está se encaminhando para uma nova fase. Lula sofre uma perseguição judicial sem paralelo na história brasileira, que resultou na marcação de seu julgamento em 2ª instância em tempo recorde, atropelando todo processo legal, em um jogo que se escancara, cada vez mais, como de cartas marcadas. Toda essa perseguição tem um objetivo claro: impedir que Lula se eleja novamente para, mais uma vez, realizar as conquistas econômicas, políticas e sociais de que o povo brasileiro precisa para se tornar cada vez mais altivo e soberano.
São muitas as arbitrariedades que Lula vem sofrendo ao longo dos tortuosos inquéritos e processos. Não podemos deixar de mencionar a espantosa e ilegal condução coercitiva a que foi submetido em março de 2016, ou as montagens de imagens e frases de efeito, especialmente de promotores públicos partidarizados, com o objetivo evidente de constrangê-lo e submetê-lo a humilhação pública, em aberta ofensa a princípios fundamentais do direito de defesa e da dignidade da pessoa humana.
Outro fato gravíssimo foi o vazamento pela própria justiça de áudios de conversas gravadas de Lula com a então presidente Dilma Rousseff, cuja ilegalidade foi reconhecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, órgão a que compete a guarda da Constituição. Até o momento, contudo, tal condenação do STF não resultou em punição ou providências que assegurem imparcialidade no julgamento do presidente Lula.
Adotou-se contra Lula o chamado “direito penal do inimigo”. Uma política judiciária de identificação prévia e de criminalização total da pessoa, independentemente e antes mesmo da existência de crime. Em relação à Lula, agem como o “juiz que não quer perder o jogo”, como foi exposto pelo renomado jurista italiano Luigi Ferrajoli, em análise pública realizada no dia 11/04, em audiência no parlamento de Roma.
Há, portanto, uma clara seletividade política de parte do sistema judiciário brasileiro. Assim, enquanto políticos ligados às oligarquias tradicionais do Brasil são protegidos, mesmo com provas materiais inquestionáveis, Lula é condenado com absoluta ausência de provas.
Saliente-se que o ex-presidente Lula nunca procurou proteção ou privilégios de qualquer espécie. Sempre esteve à disposição da lei. Nunca pretendeu estar acima da lei. Mas o que não se pode aceitar é que o coloquem abaixo da devida proteção a que todo cidadão tem direito. Lula não está acima da lei, mas não pode ficar abaixo da lei, que deveria assegurar a todos um julgamento justo.
A candidatura de Lula é a única que, até agora, se apresenta com credibilidade suficiente para se antepor à agenda de ortodoxia fiscal permanente e às reformas neoliberais patrocinadas pela turma do golpe. Todas as outras pré-candidaturas, com exceções das pouco competitivas no campo progressista, se apresentam como mera continuidade do golpe.
Por isso mesmo, a primeira tentativa de derrotar Lula antecipadamente se deu por meio de uma agressiva campanha midiática. Alguns veículos oligopolizados da mídia patrocinaram um ataque cotidiano e incondicional à Lula e à sua família durante todos esses últimos anos.
Paralelamente, foram esboçadas as tentativas de retomar o discurso do medo e da instabilidade econômica contra Lula, reavivando o mesmo expediente utilizado por esses mesmos segmentos conservadores da sociedade, em 2002, na campanha do medo. Os dados econômicos de comparação entre os governos Lula e FHC, em todas áreas, inclusive na bolsa de valores, que teve uma valorização de 535% no período Lula, quase quatro vezes superior ao período de FHC, inviabilizam a retomada de tal estratégia. Lula assumiu, em 2003, o Brasil era a 13ª economia do mundo, quando saiu já era a 6ª.
Outra iniciativa golpista foi tentar debitar nas costas de Lula e de Dilma toda a responsabilidade pela crise. Entretanto, os dados da última pesquisa Datafolha revelam que 62% da população acham o governo Temer pior que o segundo governo Dilma, e essa tendência vem crescendo fortemente. O papel do golpe no aprofundamento da crise vai ficando cada vez mais claro e a população vai distinguindo os dois projetos.
Restou, ainda, a tentativa de construir uma nova candidatura, um nome de “fora da política”. Todas fracassaram rapidamente, por falta de consistência social e política, ausência de discurso e porque, de alguma forma, também estavam associadas às desgastadas forças que patrocinaram o golpe.
Finalmente, emerge com muita força o “tapetão”. Assim, tirar Lula da disputa no “tapetão” da justiça partidarizada representaria transformar as próximas eleições em simulacro de disputa real. Significaria apostar na “pós-política” contra a política e na “pós-democracia” contra a democracia. É tolher o direito de voto de uma parcela expressiva do eleitorado, que já vem declarando voto em Lula nas pesquisas eleitorais. Significaria apostar, no fundo, no aprofundamento da crise política e da democrática.
Esse movimento para o impedimento da candidatura de Lula inclui desde a tramitação de uma proposta de emenda constitucional, que veda a candidatura de quem já foi presidente em dois mandatos, até uma forte articulação para introduzir por cima, via Congresso Nacional sem consulta popular, ao que tudo indica, um sub-presidencialismo, com a figura do primeiro-ministro, depois da realização de dois plebiscitos populares com ampla vitória do regime presidencialista.
No entanto, a iniciativa mais articulada para o impedimento da candidatura está no cerco judicial. Uma caçada que se expressa com toda força na condenação midiática sem provas e no atropelamento do devido processo legal, como foi a aceleração deliberada do julgamento de Lula em 2ª instância, com objetivo claro de torná-lo inelegível.
No Brasil, vem se intensificando elementos de exceção legal, justificados pelas operações de combates à corrupção. Prisões preventivas injustificáveis, com o objetivo quase explicito de forçar delações premiadas, e conduções coercitivas sem base legal vêm se tornando uma rotina. Uma negação dos princípios constitucionais do devido processo legal e do amplo direito de defesa.
Há um espetáculo midiático, com condenação prévia e acelerada, sem fundamentos probatórios, mas devastadores na opinião pública. Uma máquina repressiva que intimida, silencia e amordaça, que conta com ampla cumplicidade de importantes veículos de comunicação, escolhe os alvos políticos a serem atingidos. O poder sem controle conduz ao arbítrio e à exceção na relação profundamente desigual entre o cidadão e o estado.
É nesse cenário, que vem sendo promovida uma ampla e irrestrita devassa na vida de Lula e de seus familiares. Não há conta no exterior, malas de dinheiro, patrimônio oculto, como vem ocorrendo em relação a políticos conservadores que são protegidos e poupados. No caso de Lula, há uma condução coercitiva sem qualquer fundamento legal, áudios de conversas telefônicas gravados e divulgados ao arrepio da legislação, reconhecida pelo próprio STF, mas sem qualquer providência. Lula foi obrigado a acompanhar os depoimentos de suas testemunhas de defesa, mais uma humilhação pública. O Instituto Lula foi proibido de funcionar pela Justiça, decisão completamente arbitrária, que foi revogada, mas sofreu um cerco da Receita Federal cuja consequência é a inviabilidade financeira para seu funcionamento.
Importantes e prestigiadas vozes do mundo jurídico, inclusive juristas de renome internacional, reforçam que está ocorrendo um lawfare, uma perseguição judicial baseada em motivações políticas e eleitorais. Lula já foi condenado pela suposta propriedade de um apartamento, sem que qualquer prova documental, que comprove esta acusação tenha sido apresentado. A sentença está baseada na delação de um empresário que tem a propriedade efetiva do apartamento, que integra as garantias dadas pela sua empresa à Caixa Econômica Federal.
Lula e sua família nunca usufruíram ou tiveram a titularidade do referido imóvel, mas o processo de condenação segue atropelando prazos, com o objetivo explícito de aplicação da lei da ficha limpa para o impedimento de sua candidatura. Não há ato de ofício, nem vantagens indevidas. Logo, não pode haver crime de corrupção passiva sem tais premissas básicas. Da forma como o processo está sendo conduzido, a ausência do direito pleno de defesa é a ausência de justiça.
Sem Lula, a imagem do país após as eleições se assemelharia a um espelho partido, marcado pela crise de representação política, no qual a ampla maioria do povo não irá reconhecer o novo governo e a representação parlamentar resultantes de eleições manipuladas. O golpe vai caminhando para um novo golpe, um golpe preventivo contra a candidatura que representa o Novo Desenvolvimentismo dos 13 anos de governos do PT e que lidera todas as pesquisas, em todos os cenários. Um novo golpe que pretende impedir Lula de participar das eleições gerais de 2018.
Por isso, a única solução verdadeiramente democrática para resgatar a legitimidade do sistema de representação política, capaz de tirar o país da crise, é voltar a apostar no voto popular, respeitar e acatar integralmente o resultado democrático de uma eleição verdadeira, livre e limpa.
Lula retomou as caravanas da cidadania, voltou a mergulhar no Brasil profundo e continua sendo um único político importante que nunca deixou de estar junto e ouvindo o povo. As últimas pesquisas eleitorais revelam que a repulsa ao governo ilegítimo e desmoralizado de Temer está inviabilizando eleitoralmente todos os candidatos identificados com o consórcio golpista.
Em uma nova campanha eleitoral, Lula poderá mostrar o Brasil que construiu, que incluiu, e que deu autoestima ao povo e imenso protagonismo internacional. Um país que confiava em si mesmo e em seu futuro. Lula emerge com uma poderosa força popular, que tende a crescer com os debates eleitorais e com a mobilização da incansável militância partidária, sindical e popular, mesmo com o pequeno espaço na TV e nas rádios.
Lula é uma criação genuína do povo brasileiro. É sua cara e seu coração. Lula é a esperança de um pacto social que retome o combate à desigualdade e que volte a incluir socialmente. Lula simboliza o sonho da justiça social e a esperança da cidadania de uma multidão historicamente excluída. Lula também é a esperança de uma liderança política não apenas para o Brasil, mas para os países em desenvolvimento, neste mundo tão carente de lideranças.
Em 2006, a resposta aos ataques à Lula foi “Deixa o homem trabalhar! ”. Agora, seguramente, é “Deixa o homem concorrer! ”. É preciso mobilização popular para fortalecer a resistência democrática e assegurar o respeito à soberania popular pelo voto.
O Brasil precisa de eleições diretas e livres, sem tapetão. E Lula, que venceu o medo em 2002, seguramente, vencerá o ódio em 2018.
Aloizio Mercadante é economista, professor licenciado da PUC-SP e aposentado da Unicamp, foi deputado federal e senador pelo PT-SP, ministro-chefe da Casa Civil, ministro da Educação e ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação.