Michael Löwy*
(do jornal GGN)
Um dos fenômenos mais inquietantes dos últimos anos é a espetacular ascensão, no mundo inteiro, de governos de extrema direita, autoritários e reacionários, em alguns casos com traços neofascistas: Shinzo Abe (Japão), Modi (Índia), Trump (USA), Orban (Hungria) e Bolsonaro (Brasil) são os exemplos mais conhecidos. Não é surpreendente que vários deles reagiram à pandemia do coronavírus de forma absurda, negando ou subestimando dramaticamente o perigo.
Foi o caso de Donald Trump nas primeiras semanas, e de seu discípulo inglês, Boris Johnson, que chegou a propor que se deixasse o conjunto da população se infectar com o vírus, para assim “imunizar coletivamente” toda a nação – claro, com o custo de algumas centenas de milhares de mortes… Mas diante da crise, os dois tiveram de recuar, no caso de Boris Johnson, sendo ele mesmo gravemente atingido.
O caso do Brasil torna-se assim especial, porque o personagem do Palácio da Alvorada persiste em sua atitude “negacionista”, caracterizando o coronavírus como uma “gripezinha”, definição que merece entrar nos anais, não da medicina, mas da loucura política. Mas esta loucura tem sua lógica, que é a do “neofascismo”.
O neofascismo não é a repetição do fascismo dos anos 1930: é um fenômeno novo, com características do século 21. Por exemplo, não toma a forma de uma ditadura policial, respeita algumas formas democráticas: eleições, pluralismo partidário, liberdade de imprensa, existência de um Parlamento etc. Naturalmente, trata, na medida do possível, de limitar ao máximo estas liberdades democráticas, com medidas autoritárias e repressivas. Tampouco se apoia em tropas de choque armadas, como o eram as SA alemãs ou o Fascio italiano.
Isto vale também para Bolsonaro: ele não é nem Hitler nem Mussolini, e não tem nem mesmo como referência a versão brasileira do fascismo nos anos 1930, o integralismo de Plínio Salgado. Enquanto que o fascismo clássico propugnava a intervenção massiva do Estado na economia, o neofascismo de Bolsonaro é totalmente identificado com o neoliberalismo, e tem por objetivo impor uma política socioeconômica favorável à oligarquia, sem nenhuma das pretensões “sociais” do fascismo antigo.
Um dos resultados desta versão fundamentalista do neoliberalismo é o desmantelamento do sistema de saúde pública brasileira (SUS), já bastante fragilizado pelas políticas de governos anteriores. Nestas condições, a crise sanitária decorrente da disseminação do coronavírus pode ter consequências trágicas, sobretudo para as camadas mais pobres da população.
Outra característica própria ao neofascismo brasileiro é que, apesar de sua retórica ultranacionalista e patrioteira, ele é completamente subordinado ao imperialismo americano, do ponto de vista econômico, diplomático, político e militar. Isto se manifestou também na reação ao coronavírus, quando se viu Bolsonaro e seus ministros imitar Donald Trump, culpando os chineses pela epidemia.
O que Bolsonaro tem em comum com o fascismo clássico é o autoritarismo, a preferência por formas ditatoriais de governo, o culto do Chefe (“Mito”) Salvador da Pátria, o ódio a esquerda e ao movimento operário. Mas não consegue organizar um partido de massas, nem tropas de choque uniformizas. Tampouco tem condições, por enquanto, de estabelecer uma ditadura fascista, um Estado totalitário, fechando o Parlamento e colocando fora da lei sindicatos e partidos de oposição.
O autoritarismo de Bolsonaro se manifesta no seu “tratamento” da pandemia, tentando impor, contra o Congresso, os governos estaduais e seus próprios ministros uma política cega de recusa das medidas sanitárias mínimas, indispensáveis para tentar limitar as dramáticas consequências da crise (confinamento, etc). Sua atitude tem também traços de social-darwinismo (típico do fascismo): a sobrevivência dos mais fortes. Se milhares de pessoas vulneráveis – idosos, pessoas de saúde frágil – virem a falecer, é o preço a pagar, afinal, “o Brasil não pode parar!”.
Um aspecto específico do neofascismo bolsonarista é seu o obscurantismo, o desprezo pela ciência, em aliança com seus apoiadores incondicionais, os setores mais retrógrados do neopentecostalismo “evangélico”. Esta atitude, digna do terraplanismo, não tem equivalente em outros regimes autoritários, mesmo aqueles que têm como ideologia o fundamentalismo religioso como é o caso do Irã. Max Weber distinguia religião, baseada em princípios éticos, e magia, a crença nos poderes sobrenaturais do sacerdote. No caso de Bolsonaro e seus amigos pastores neopentecostais (Malafala, Edir Macedo, etc) se trata mesmo de magia ou de superstição: parar a epidemia com “orações” e “jejuns”…
Embora Bolsonaro não tenha conseguido impor o conjunto de seu programa mortífero, uma parte dele – por exemplo, um relaxamento do confinamento – talvez se imponha, por meio de imprevisíveis negociações do presidente com seus ministros, militares ou civis.
Apesar do comportamento delirante do sinistro personagem atualmente instalado no Palácio da Alvorada, e da ameaça que ele representa para a saúde publica, uma parcela importante da população brasileira ainda o apoia, em maior ou menor medida. Segundo sondagens recentes, só 17% dos eleitores que votaram nele se mostram arrependidos de seu voto.
O combate da esquerda e das forças populares brasileiras contra o neofascismo ainda está no começo; será preciso mais do que alguns simpáticos protestos de caçarolas para derrotar esta formação política teratológica. Certo, mais cedo ou mais tarde o povo brasileiro vai se libertar deste pesadelo neofascista. Mas qual será o preço a pagar, até lá?
Post Scriptum: Em 20 de abril Bolsonaro fez uma declaração significativa. Disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pelo Covid-19, isto é inevitável”. Claro, seguindo a lógica da “imunização de grupo” (proposta inicial de Trump e Boris Johnson, depois abandonada), isto talvez pudesse acontecer. Mas só seria “inevitável” se Bolsonaro conseguisse impor sua política de recusa das medidas de confinamento: “o Brasil não pode parar”.
Quais seriam as consequências? A taxa de mortalidade do Covid 19 no Brasil atualmente é de 7% das pessoas contaminadas. Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos.
Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio. Por um crime equivalente, vários dignitários nazistas foram condenados à forca pelo Tribunal de Nuremberg.
*Michael Löwy é diretor de pesquisas, na França, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).