Advogado, professor de Direito, ex-Ministro de Estado da Justiça e ex-Advogado-Geral da União, José Eduardo Martins Cardozo atuou como defensor da presidenta eleita no processo de impeachment, e vê semelhanças entre aquele julgamento e o julgamento de Lula, tese que desenvolve no artigo “Vivendo o Direito”, escrito para o livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”:
— O impeachment de Dilma Rousseff e a sentença condenatória do ex-Presidente Lula têm, de fato, muita coisa em comum. Em ambos os processos, os julgadores ficaram surdos e já sabiam de antemão que iriam condenar, independentemente das provas que fossem produzidas. Em ambos os processos, os aplausos do senso comum, a intolerância ideológica incentivada por setores expressivos da mídia conservadora ou paga por conservadores, e o desapego a direitos consagrados na Constituição e nas leis foram uma realidade. Em ambos os processos, enfim, se vê a mão cinza e tortuosa de um Estado de Exceção lapidado por punhos de renda.
A íntegra do artigo de José Eduardo Cardozo:
VIVENDO O DIREITO
José Eduardo Martins Cardozo
Há muitos anos pensei em largar o estudo do direito. Corriam soltos os anos finais da década de 70. Vivíamos o período da ditadura militar, e eu jovem comecei a ver desmoronar um conjunto de crenças que haviam me motivado a ingressar na faculdade de direito. Na Constituição de 1967, estavam estabelecidos direitos que a realidade social e política negava de forma violenta. Na periferia da minha cidade, onde me engajei em um trabalho de atendimento jurídico voluntário da população carente, percebi que em relação aos mais pobres a isonomia não passava de um mito retoricamente ensinado nos nossos manuais. Como no mandamento expresso por Orwell, no seu Animal Farm, constatei que embora pela Constituição todos devam ser “iguais” perante a lei, na realidade da vida, alguns sempre eram considerados “mais iguais que os outros”.
A leitura de um texto que sustentava a tese de que era impossível ser jurista e contestador, desencadeou de vez a crise no jovem de quase vinte anos de idade. Vou ser um profissional que atua no mundo da farsa, da hipocrisia, do autoritarismo encoberto pela retórica? Vou ajudar na manutenção de um status quo que repudio, vendendo falsas ilusões de que pelo direito se faz justiça?
A angústia me fez devorar livros que pudessem me dar uma resposta definitiva sobre o que fazer da minha vida profissional. Provavelmente tenha sido aí que aprendi a gostar definitivamente de Filosofia do Direito, cadeira em que tive a oportunidade de lecionar anos depois na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E também foi a partir daí que decidi mergulhar de vez no mundo acadêmico e atuar profissionalmente na área do direito, como uma opção de fé e de vida. Percebi que um profissional do direito, se souber captar sem ingenuidade, dogmatismo, ou tecnicismo exacerbado, a dimensão histórica do fenômeno normativo, pode usar o direito para desmascarar a farsa jurídica, a injustiça, o autoritarismo, e ser uma importante linha auxiliar na construção da utopia em que acredita. Percebi que um advogado pode e deve falar alto quando o julgador não quer ouvi-lo, sem transgredir as regras processuais, para que a sociedade ouça, fora da sala de audiência, a injustiça ou o arbítrio que se comete. Percebi, finalmente, que é possível ser um operador do direito, e utilizar o próprio direito para colocar em cheque o status quo e as relações de poder existentes em uma sociedade injusta, arbitrária, intolerante e excludente.
Foi nos livros e na experiência cotidiana que aprendi também que o direito e o poder são realidades indissociáveis. Não existe direito sem um poder que o garanta, do mesmo modo que não existe poder duradouro sem um direito que de alguma forma o legitime. Também aprendi que tanto o cientista, como o operador do direito, jamais serão neutros. Seres humanos nunca são neutros. Pensam e agem, nas suas vidas cotidianas e no seu exercício profissional, de acordo com as suas paixões, sua psique, sua visão de mundo, suas concepções políticas, e a própria visão ideológica que envolve seu pensar. E por mais que alguns não queiram assumir essa condição amesquinhada e falível, por se julgarem habitantes do Olimpo, operadores do direito serão sempre seres humanos. A menos que algum dia, em uma sociedade autoritária, robôs os substituam.
Foi também nesse período que aprendi que embora não sendo neutros, juízes não podem ser parciais. “Neutralidade” e “parcialidade” são coisas distintas. O ser “neutro” equivale a ter uma forma de pensar asséptica do ponto de vista axiológico, o que é incompatível com a mente humana. O ser “parcial” é assumir um lado, uma bandeira. É ter uma posição estruturada e definida no campo em que se trava uma disputa.
Um advogado, por exemplo, será sempre “parcial”. A ele caberá assumir a defesa de uma parte em um conflito de interesses. Ele sempre terá “lado”. Naturalmente, a sua forma de ser, de ver o mundo, a sua não-neutralidade”, enfim, marcará a forma pela qual ele parcialmente defenderá os interesses da parte que representa. Já um juiz, embora não seja neutro, jamais poderá ser “parcial”. Ele não exerce a sua função em apoio a uma parte, para condenar ou absolver. Ele não deve buscar, com as suas decisões, os aplausos da multidão, ou a consagração pelos meios de comunicação. Com a sua “não-neutralidade” cognoscitiva, ele tem o dever funcional de examinar a realidade objetiva para “dizer o direito”, não de acordo com o que quer ou com o que o senso comum deseja, mas aplicando objetivamente aquilo que os representantes eleitos pelo povo aprovaram. É assim que deve ser nos Estados Democráticos de Direito.
É claro que um juiz mais humanista tenderá a valorar, com tintas mais fortes, os direitos e as garantias dadas pela ordem jurídica. É evidente que um juiz de matizes ditatoriais e autoritárias pensará o direito sem tantas “garantias” e “direitos subjetivos” outorgados aos cidadãos. Isso é próprio dos seres humanos. O que não é próprio, todavia, de um juiz, é a imposição da sua concepção, com a negação de fatos e normas, como se a lei nada dissesse, e só a sua verdade pessoal devesse prevalecer. Interpretar valorativamente é próprio de quem não é neutro, por ser humano. Construir fatos e juízos de “dever ser” para além do que diz a lei, criando realidades que nenhuma interpretação valorativa justifica, é próprio de quem é arbitrário e abusa do seu poder.
Com esse aprendizado, me tornei advogado, professor e atuei na vida pública. Imaginei que com a Constituição de 1988, nosso país tinha atingido um outro patamar civilizatório. Embora a realidade precisasse sair do papel, imaginei que passaríamos a viver em um autêntico Estado Democrático de Direito, sem mais incorrer em retrocessos.
Por isso, talvez ainda por uma certa dose de ingenuidade histórica e política, me surpreendi com o impeachment de Dilma Rousseff e agora com a sentença condenatória do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No impeachment, vi um golpe de Estado, construído sem armas ou baionetas caladas, mas com uma retórica jurídica ridícula que uniu os neoliberais derrotados na eleição de 2014, aos que desejavam a qualquer preço a transgressão das leis e a violação de princípios jurídicos e éticos para evitar a “sangria da classe política brasileira”. No julgamento de Lula vi uma sentença condenatória dura, fundada em provas inexistentes, e ainda em uma retórica que procura encobrir o fato de que quem deveria julgar com imparcialidade, atuou como acusador. Uma sentença, enfim, em que as “convicções” substituíram as “provas”.
O impeachment de Dilma Rousseff e a sentença condenatória do ex-Presidente Lula tem, de fato, muita coisa em comum. Em ambos os processos, os julgadores ficaram surdos e já sabiam de antemão que iriam condenar, independentemente das provas que fossem produzidas. Em ambos os processos, os aplausos do senso comum, a intolerância ideológica incentivada por setores expressivos da mídia conservadora ou paga por conservadores, e o desapego a direitos consagrados na Constituição e nas leis foram uma realidade. Em ambos os processos, enfim, se vê a mão cinza e tortuosa de um Estado de Exceção lapidado por punhos de renda.
Muitas vezes, como advogado de Dilma Rousseff, no processo de impeachment, com a cabeça no travesseiro, voltei à mesma indagação que me fazia aos 20 anos. Agi certo ao escolher essa profissão e essa área acadêmica de estudos, onde reina a hipocrisia e a canonização de arbitrários que fazem da prepotência a sua virtude? O mesmo volto a pensar agora, ao ler a sentença condenatória do ex-Presidente Lula, no caso do apartamento “tríplex”.
É fato que desde a minha juventude Luiz Inácio Lula da Silva é um mito. Um mito que construiu um partido ao qual aderi desde a fundação, e que se revestiu da condição de ser o primeiro Presidente da República que encarnou, no exercício do poder, o respeito à democracia, a transformação social e o combate à exclusão social, como um ponto de partida e de chegada. Por isso, reconheço, não sou neutro em relação a ele e à sua história. Mas essa ausência de neutralidade não me distorce a visão, a ponto de fantasiar a realidade, ou de construir visões falsas sobre o que não existe. A sentença que o condenou é objetivamente infundada, e juridicamente construída com um evidente animus condenatório. Não existem provas suficientes para que um decisum condenatório seja afirmado nesse processo, apresentando-se a sentença desajustada à própria denúncia oferecida pelo Ministério Público. Os argumentos retóricos e infundados buscam dar uma aparência de “legitimidade” a uma condenação absolutamente arbitrária.
Mesmo uma pessoa que odeie o ex-Presidente Lula, e o execre com todas as forças da sua alma, poderá perceber isso se conseguir afastar do seu cérebro a paixão que turva a razão e adotar o bom-senso como parâmetro de reflexão.
Mais uma vez retorno à pergunta dos meus 20 anos, e chego, novamente, à mesma resposta. No momento em que vive hoje o Brasil, há um importante papel a ser cumprido, na defesa da democracia e do Estado de Direito. É indispensável que nós advogados, membros do Ministério Público, magistrados, defensores públicos, delegados de polícia, operadores do direito em geral, mostremos o nosso compromisso com a verdade e com a justiça, lutando por ele. Não se pode admitir que uma ex-Presidente da República seja afastada do seu cargo, pela acusação de crimes de responsabilidade inexistentes e invocados como pretextos retóricos para a consumação de um golpe de Estado. Não se pode admitir que um cidadão, ex-Presidente da República ou não, seja condenado sem provas, independentemente da razão que motiva o julgador, ou das suas “crenças” e “convicções”. É nosso papel desmascarar, com coragem e ousadia, os falsos argumentos jurídicos que recobrem intenções “não- jurídicas” descompassadas com os valores consagrados na nossa Constituição e que representam o nosso atual estágio de evolução humana e civilizatória. É nosso papel denunciar que, nas condenações criminais, convicções, paixões ou intenções, jamais poderão substituir o papel das provas.
Por isso, mais de 30 anos depois das dúvidas e da angústia que me assaltaram nos bancos universitários, olho para o passado, para o presente e para o futuro, e digo que não me arrependo da opção que fiz. Há muito ainda a fazer. Continuemos gritando forte, para que nossos gritos pelo Estado de Direito e pela justiça sejam ouvidos fora da sala de audiência, sempre que um julgador, parlamentar ou juiz, não queira nos ouvir. Continuemos a construir, com garra e perseverança, a nossa utopia.