Pedro Paulo Zahluth Bastos*
Por que é melhor um governo emitir do que endividar-se em uma crise?
A crise provocada pela pandemia provocou um consenso raro entre os economistas brasileiros: quase todos admitem que o governo deve gastar mais do que arrecada, ou seja, ter déficit público para combater a crise econômica e de saúde pública. Mesmo aqueles que por anos alegaram que “o dinheiro acabou” e que a economia podia se recuperar sem gasto público deficitário subitamente mudaram de posição.
O consenso desaparece quanto ao modo de financiar o déficit a curto prazo, para não falar do longo prazo. Enquanto alguns, como eu, aceitam a emissão de dívida pública, mas defendem também a emissão monetária, outros alegam que a emissão monetária deve ser descartada porque, se fizer diferença, é para pior, porque vai virar dívida pública de qualquer modo através de um mecanismo que explicarei em breve.
Vou defender, ao contrário, que emitir moeda para financiar o gasto deficitário faz diferença para melhor, inclusive porque parte significativa (talvez a maior parte) não vai virar dívida pública, mas ser retida como papel moeda pelo público. Como veremos, a parte que se tornar reserva bancária, por sua vez, pode ser absorvida com custo fiscal muito menor (ou nulo) do que com lançamento de títulos da dívida pública. Não devemos, portanto, aceitar tabus inscritos na Constituição de 1988 para forçar o governo a gastar apenas se obtiver recursos através de impostos ou dívida.
Para que se entenda a controvérsia, é preciso saber que o Banco Central do Brasil (BCB) faz política monetária fixando uma meta para a taxa de juros primária ou básica de curto prazo, a taxa do SELIC (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia). Esta taxa é o custo do empréstimo por um dia (overnight) de reservas bancárias. Os bancos mantêm um encaixe monetário para atender a demandas de saque pelos clientes, mas depositam suas reservas excedentes no BCB, podendo também as emprestar para outros bancos no chamado mercado interbancário.
As reservas bancárias depositadas no BCB não rendem juros diretamente, apenas indiretamente. Elas são depositadas através de Operações Compromissadas, chamadas assim porque os bancos recebem do BCB, em troca, títulos públicos com um compromisso de revenda (concomitante ao compromisso de recompra pelo vendedor, o BCB) no dia útil seguinte. São estes títulos, as Letras Financeiras do Tesouro (LFT), que rendem juros. A taxa de juros destes títulos (que os bancos recebem por depositarem suas reservas bancárias no BCB) é a meta fixada pelo BCB nas reuniões do Conselho de Política Monetária (COPOM), a meta para o SELIC. É por isso que se diz que os juros das LFT são “pós-fixados”, ou seja, podem variar de acordo com as decisões do COPOM.
Os bancos têm a opção de emprestar ou tomar emprestado reservas no mercado interbancário, sempre em operações compromissadas, ao invés de realizar transações com o BCB. A cada dia, alguns bancos têm entradas (saídas) maiores que as saídas (entradas) de recursos como resultado de suas decisões de empréstimo e das decisões de seus correntistas de gastar depósitos em favor de terceiros, com saques de papel-moeda ou transferências financeiras. As posições superavitárias e deficitárias podem ser liquidadas com empréstimos interbancários. Isso ocorre porque as operações compromissadas com o BCB têm uma taxa de juros ligeiramente menor do que a SELIC quando um banco comercial deposita reservas no BCB, e uma taxa de juros ligeiramente maior quando um banco entrega LFTs para o BCB em troca de reservas. Os juros dos empréstimos interbancários oscilam entre o piso e o teto definido pelo BCB, tendendo ao centro que é a meta do SELIC.
A meta de taxa de juros SELIC é a principal decisão de política monetária, já que o BCB procura controlar a inflação ao afetar a decisão bancária de oferta de crédito (quantidade e preço) ao definir a taxa básica. A suposição teórica é que a elevação (redução) da inflação resulta do excesso de ocupação (desocupação) da capacidade produtiva da economia (o chamado produto potencial). Assim, a elevação (redução) dos juros básicos busca conter (estimular) a demanda para desocupar (ocupar) a capacidade e influenciar as expectativas de inflação.
Qual o principal mecanismo de transmissão dos juros básicos para o crédito bancário? Ora, ao emprestar dinheiro, os bancos ganham por causa da diferença (spread) entre o custo de captação de reservas bancárias, que é a SELIC, e a taxa de juros cobrada nos empréstimos. É claro que ganham ainda mais quando captam recursos a custo zero com depósitos à vista não remunerados. De todo modo, quando o banco central aumenta a taxa básica, o objetivo é desincentivar a oferta de crédito, pois os bancos que emprestarem demais podem precisar de reservas no final do dia, arcando com um custo maior no curto prazo. Como, em seguida, os juros para quem toma empréstimos nos bancos também tendem a aumentar, outra ideia do banco central é desincentivar a demanda de crédito (se tomadores reagirem negativamente aos juros mais elevados). Já quando o banco central reduz a meta SELIC, ele quer o contrário, ou seja, incentivar a oferta e a demanda de crédito.
Entendido isto, é possível entender melhor a controvérsia sobre emissão de dívida pública ou emissão monetária para financiar o déficit público, que repete alguns anos depois uma controvérsia internacional semelhante.
As objeções à emissão monetária não consideram variáveis importantes.
As três principais posições contrárias à emissão monetária são as seguintes:
1) A emissão só faz diferença (em relação à dívida pública) se reduzir taxas de juros, e apenas caso o Banco Central do Brasil (BCB) abandone a meta de taxa de juros SELIC que é o instrumento principal da política monetária, principalmente em um regime de metas de inflação. Esta é a posição de Samuel Pessôa.
2) O mesmo argumento acima, com a diferença de que se aposta que o BCB não vai abandonar a meta de taxa de juros SELIC (nem mudar a meta para baixo, reduzindo a SELIC). Portanto, o BCB vai enxugar o excesso de reservas bancárias (gerado pela emissão monetária) com operações compromissadas nas quais troca títulos públicos (que pagam juros SELIC) pelas reservas bancárias excedentes. Logo, a emissão tem o mesmo custo fiscal e, portanto, não faz diferença em relação à dívida pública, mas só gera confusão. Este é o argumento que David Deccache e Guilherme Mello fizeram logo depois de Pessôa, sendo repetidos por Nelson Barbosa alguns dias mais tarde.
3) A emissão monetária faz diferença sim, mas para pior, pois põe a perder décadas de reconstrução da credibilidade quanto à defesa do valor da moeda (combate à inflação), a responsabilidade fiscal e a independência do BCB (ao jogar juros SELIC a zero). Esta é a hipótese de Marcos Mendes.
Há vários problemas nas duas primeiras posições, mas vou discutir apenas três questões essenciais. Economicamente, as críticas ignoram o impacto favorável da emissão monetária sobre os custos de financiamento do Tesouro. Também desconsideram opções sem custo fiscal para enxugar a liquidez excedente criada pela emissão. Ademais, a emissão quebra tabus ideológicos que Mendes parece querer manter. No que se segue, abordo apenas a emissão monetária para compra de títulos públicos novos, ou seja, não vou discutir o impacto positivo da chamada “facilitação quantitativa” – a compra de títulos pelo BCB no mercado secundário – sobre a redução do custo fiscal da dívida pública, a diminuição de juros de longo prazo e a contenção de perdas de capital.
As duas primeiras posições supõem que tanto a moeda quanto o título de dívida pública têm o mesmo custo fiscal, mas isso não é verdade nem a curto nem a longo prazo. A curto prazo, a questão é que a base monetária criada pela emissão será parcialmente retida como papel moeda em poder do público (PMPP), sem necessariamente ser depositada nos bancos (como suposto erroneamente por Samuel Pessôa ou por pesquisadores da UFRJ). Quando não se transforma em reserva bancária, não pode se transformar em operação compromissada e, portanto, não tem custo fiscal.
Isto faz uma enorme diferença, pois dos dois componentes da base monetária, o PMPP é sistematicamente maior do que os depósitos à vista no sistema bancário, que são a fonte das reservas bancárias. Em março de 2020, o PMPP totalizava R$ 215 bilhões, enquanto os depósitos à vista somavam R$ 206 bilhões. Com juros baixos e uma parcela crescente de trabalhadores desempregados ou informais, é pouco provável que haja uma corrida para usar mais cheques e transferências financeiras, mesmo que não se pagasse tarifas bancárias por isso.
Isto significa que, mesmo que a participação do PMPP na base monetária diminua na margem, em torno de metade do gasto público financiado por moeda não teria custo fiscal, ou seja, faria enorme diferença em relação à emissão de dívida pública. É por isto que se diz que um Estado que tem o monopólio de emissão de moeda de curso forçado tem ganho de senhoriagem, ou seja, o benefício de gastar moeda cujo custo de emissão é desprezível. Aliás, ao não ser depositado nos bancos, este volume de PMPP também não pressiona para baixo os juros interbancários.
A objeção à emissão monetária também desconsidera que uma parte dos depósitos bancários é recolhida na forma de depósitos compulsórios no banco central, podendo ser remunerada ou não. Ou seja, as reservas bancárias depositadas no BCB são divididas em reservas livres e compulsórias. Enquanto as reservas compulsórias não precisam ser remuneradas para que a meta de taxa de juros seja buscada, as reservas livres são remuneradas nas operações compromissadas. Assim, o PMPP e os depósitos compulsórios não remunerados não têm custo fiscal, representando uma enorme diferença em relação à emissão de dívida pública, que pode resultar em pagamento de juros antes mesmo da realização do gasto público.
No debate internacional sobre a questão, economistas do BIS notaram que o Estado pode alterar o custo fiscal das reservas bancárias ao modificar a relação entre reservas livres e compulsórias não remuneradas. De fato, foi exatamente isto que o BCB fez em março, mas com o resultado oposto. O banco central liberou recolhimentos compulsórios no valor de R$ 108,1 bilhões, mas as reservas livres aumentaram R$ 108,8 bilhões no mesmo mês.
O objetivo do BCB foi aumentar a liquidez bancária em meio à crise global, mas ao invés de induzir os bancos a ampliarem o crédito às empresas e famílias, isto reforçou a expansão do saldo das operações compromissadas à medida que as reservas bancárias excedentes cresceram, dado o aumento da preferência pela liquidez ou a aversão ao risco dos bancos. O empoçamento de liquidez nos bancos é mais um motivo por que, como sugeria Keynes, a expansão de liquidez deveria ser canalizada através do gasto público. Como se diz, pode-se levar um cavalo para beber água, mas não se pode forçá-lo a beber. Em março, as compromissadas do BCB aumentaram R$ 181,8 bilhões em relação a fevereiro, pulando de 13,9% do PIB para 16,3%.
O ponto é que a operação reversa pode ocorrer quando o banco central resolver aumentar os depósitos compulsórios não remunerados, reduzindo o custo fiscal das operações compromissadas. Esquemas mais complexos para reduzir o custo fiscal da política monetária já foram propostos. Ao debater a questão em 2016, Ben Bernanke sugeriu que as reservas poderiam ser remuneradas, mas que o custo fiscal poderia ser recuperado através de um imposto compensatório sobre os bancos tendo outro fato gerador que não as reservas bancárias. Preocupado com o caso brasileiro em 2015, o economista-chefe para a América Latina da Standard & Poor, Joaquin Cottani, propôs a “conversão em reservas de liquidez mínimas remuneradas à taxa inferior àquela do mercado parte do estoque de repôs (compromissadas) que hoje fazem os bancos com o BCB”.
Reformulando um argumento de Bernanke, os economistas do BIS ressaltaram que “é possível que a demanda por reservas cresça com o tempo até que as reservas excedentes sejam eliminadas”. Melhorando seu argumento, a questão é que o custo fiscal indireto trazido pela emissão monetária deve ser comparado dinamicamente (e não apenas estaticamente) com a emissão de títulos públicos. Na proporção em que a economia volte a crescer e que o crédito bancário se expanda, a relação compromissadas/PIB tende a cair à medida que a relação crédito novo/PIB aumente, ou seja, conforme a preferência pela liquidez dos bancos diminua.
Tudo o mais constante, a aceleração da taxa de crescimento do PIB reduz a relação dívida pública/PIB, mas, comparativamente, conforme Bernanke, simplesmente elimina parte das reservas bancárias excedentes que são a contrapartida das operações compromissadas com o banco central. Ou seja, o saldo das compromissadas pode diminuir ao longo do tempo sem que se incorra nos mesmos custos da amortização (pagamento) de um título público lançado no mercado, pois o banco central simplesmente devolve a reserva bancária em troca do título “compromissado”, sem gastar recursos do Tesouro. Ademais, a redução no saldo das compromissadas pode ser acelerada por depósitos compulsórios crescentes. Comparativamente, o prazo longo de LFTs ou de NTNs lançadas no mercado resulta em custo fiscal pelo tempo inteiro até a amortização (ou rolagem) do título.
Quebrando tabus com o dinheiro de helicóptero
Finalmente, há um benefício político e ideológico em recorrer à emissão, que é simétrico à objeção de Marcos Mendes. Mendes parece supor que o aumento da oferta de moeda vai inevitavelmente provocar inflação. Não se sabe exatamente por que, mas Mendes parece imaginar que o excesso de reservas bancárias vai jogar a taxa SELIC a zero, pressionar a capacidade produtiva ociosa e provocar fuga de capitais, isto é, Mendes ainda pensa como um monetarista na década de 1970 em Chicago, mirando em espantalhos.
Ora, ninguém propôs jogar a SELIC para zero a ponto de eliminar o diferencial de rentabilidade em títulos financeiros denominados em reais ou em dólares, nem elevar desesperadamente os juros para tentar reverter a fuga para a qualidade em dólares às custas da estabilidade financeira interna. De todo modo, se a oferta de moeda provocar mesmo um aumento excessivo do crédito no futuro, basta elevar os depósitos compulsórios para enxugar reservas bancárias sem custo fiscal se e quando o problema surgir. Para alguém que passou a admitir, ainda que a contragosto, o gasto deficitário, para ser coerente Mendes deveria defender a emissão monetária para financiar o déficit agora se quiser limitar o aumento da relação dívida pública/PIB para não forçar mais austeridade depois. Talvez ele não queira ser coerente.
O problema para Mendes e outros do mantra “o dinheiro acabou” é que as regras limitantes para o gasto público e a política monetária defendidas pelo neoliberalismo estão ruindo para qualquer observador atento do debate internacional entre os economistas. A justificativa era que, ao invés de gastar, o governo deveria apenas se preocupar em garantir estabilidade de preços e credibilidade da trajetória da dívida pública porque o mercado faria o resto, assegurando crescimento estável.
Politicamente, a função das velhas regras neoliberais é evidente: proteger credores e portadores de riqueza financeira contra o suposto populismo do gasto social para os “preguiçosos” e contra o “racionalismo” dos que planejam investimentos para desenvolver a estrutura produtiva do país. E assegurar que o governo possa gastar apenas se obtiver recursos através de impostos ou dívida.
A preferência política dos credores da dívida pública virou tabu inscrito no Artigo 164 § 1º da Constituição Federal, que proíbe o Banco Central de financiar diretamente o gasto público através da compra de emissões primárias de títulos públicos. Os credores, sobretudo aqueles da parcela mais rica entre os brasileiros, preferem que o governo gaste se endividando com eles com a taxa de juros mais alta possível, proibindo a emissão. Ao mesmo tempo, vetam politicamente impostos progressivos. Quando a dívida pública aumenta, a pressão política dos credores se exerce sempre para que o governo corte gastos para mitigar seu próprio medo de calote.
Em suma, detentores de riqueza geralmente alegam que impostos progressivos prejudicam a economia como um todo, e sempre preferem emprestar ao governo com juros elevados a pagar impostos. Podemos rediscutir a questão dos impostos progressivos em breve, mas já ajuda quebrar um outro tabu desde logo.
De fato, ao liberarmos o financiamento monetário do gasto público novo, quebramos um tabu que permite voos até mais altos. Daí, podemos pensar em complementar o financiamento monetário do déficit público com o verdadeiro “dinheiro de helicóptero”, para usar a metáfora que Milton Friedman usou ao cogitar sobre a transferência direta de dinheiro emitido pelo banco central para os cidadãos, sem compromisso de devolução. Se a birra é com o orçamento público inflado em meio à maior depressão da história brasileira, qual a oposição quanto a emitir dinheiro diretamente (sem passar pelo orçamento do Tesouro) para os cidadãos, sobretudo para aqueles que precisam sobreviver e respeitar o isolamento social ao mesmo tempo?
*Pedro Paulo Zahluth Bastos é Professor Associado do Instituto de Economia da UNICAMP