Giles Azevedo, Clara Lis Coelho de Andrade e Eneida Vinhaes Dultra
Sem constituintes e sem participação popular, de forma ardilosa e nem tão silenciosa assim, Bolsonaro está escrevendo uma nova Constituição. O pacto social baseado na solidariedade e na ideia de seguridade social, construído em 1988, depois de mais de 20 anos de luta, começou a ser alterado já em 2016, com o teto dos gastos, com o aumento da DRU [Desvinculação de Receitas da União], com as reformas trabalhista e da previdência. Agora, começa a ter o contorno de uma nova constituição.
Os textos apresentados por Jair Bolsonaro ao Congresso, apesar de pontuais, implicam em alterações profundas no espírito que embalou a nossa Constituição de 1988. Além das ofensivas legislativas, também o discurso do Presidente viola as balizas estruturantes do Estado Democrático de Direito, fundado com o pacto social pós-ditadura.
Soberania, democracia, liberdade, humanismo, meio ambiente, proteção social, minorias e adequação orçamentária, de forma a dar voz e vez a quem nunca teve, são propósitos sobre os quais a ofensiva direta e indireta do governo é uma constante.
Se buscarmos os princípios sobre os quais se construiu a nova Carta, no discurso de Ulysses Guimarães proferido durante a promulgação da Constituição Cidadã, veremos que nenhum deles sobreviverá à era Bolsonaro. Ulysses deixa claro que a nova Constituição tem no ser humano o seu eixo estruturante e no combate a seu maior flagelo, a miséria, o principal desafio:
“A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábrica. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria.”
As mudanças operadas por Bolsonaro – tanto através de propostas de emendas à Constituição quanto nos atos oficiais e discursos amplamente veiculados – reforçam valores do atual governo e carecem da “contemporaneidade e autenticidade social” reivindicadas por Ulysses em seu discurso na sessão de 5 de outubro de 1988.
A Proposta de Emenda Constitucional nº 188/2019, protagonizada pelo governo, acrescenta o parágrafo único ao art. 6º da Constituição, condicionando e fragilizando os direitos ali elencados: “será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.” A PEC propõe “um novo modelo fiscal” para Federação Brasileira, que submete a fruição dos direitos fundamentais insculpidos no caput do art. 6º à lógica fiscalista.
Pretende-se desvincular todas as receitas da União, dos estados e municípios além de acabar com as obrigações constitucionais de investimento mínimo em previdência, saúde e educação. Essa é a proposta que o Ministro da Economia quer ver implantada rapidamente, através da Proposta de Emenda Constitucional nº 187/2019, que está com tramitação adiantada no Senado Federal tendo a desvinculação dos fundos como primeiro passo. Não obstante, sabemos que a sustentabilidade da área da saúde, educação, cultura, direitos humanos, ciência e tecnologia, meio ambiente, entre outras que impactam diretamente na vida do povo brasileiro é fundada na indexação e vinculação de receitas.
A intenção constituinte de promover efetiva integração social para atendimento à população em seus mais diversos aspectos e necessidades e ser “luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados” está “indo por água abaixo”.
Somos um dos países mais desiguais do mundo e os poucos mecanismos para reduzir essas desigualdades foram ou estão sendo liquidados. É o caso da política de valorização real do salário mínimo (Definida na Lei 12.382/2011 e confirmada pela Lei 13.152/2015), que findou no ano de 2019. Era fundamental para a efetiva redução da desigualdade da renda do trabalho, fato inédito conquistado nas últimas décadas, mas foi destruída. Bolsonaro acabou com qualquer reajuste acima da inflação.
Derrubando princípios basilares, o direito e o acesso à aposentadoria e à pensão por morte foram simplesmente sequestrados do povo brasileiro pelo governo, na “reforma” da Previdência (convertida na EC 103). Em seguida, o governo fechou agências do INSS, extinguiu cargos, reduziu o horário e limitou o atendimento a meios eletrônicos abandonando, por completo, todo um sistema de acompanhamento e de proteção social.
O desprezo pelas necessidades dos mais pobres revela em toda a sua perversa dimensão a desumanidade da agenda neoliberal aplicada pelo governo Bolsonaro e afronta o princípio primeiro – elencado por Ulysses Guimarães – de combate à miséria.
Não é só nas propostas de Emendas à Constituição Cidadã e ataques diretos ao sistema de seguridade social que fica escancarado o desejo por alterar as bases sociais que fundaram o marco civilizatório brasileiro. Também nas ações cotidianas, em discursos e em atos oficiais esse objetivo vem se tornando claro. O Presidente e parte dos seus Ministros agem insuflando ódio entre cidadãos de forma abertamente preconceituosa, racista e misógina, em violação direta ao princípio da vedação ao retrocesso. Bolsonaro persegue, como política de Estado, as populações indígenas, quilombolas e as minorias.
Assim pensava Ulysses, em 1988, sobre a universalidade de direitos e contra desigualdade:
“Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do príncipe, que é unipessoal e desigual para os favorecimentos e os privilégios.”
Tanto com a criação de mecanismos de proteção aos trabalhadores como na constitucionalização da defesa do meio ambiente, o discurso de Ulysses emprestou um caráter de vanguarda ao texto constitucional:
“É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar.”
A agenda do governo, na contramão do que consagrou o texto constitucional, está desconstituindo as garantias fundamentais, dentre as quais se enquadra a necessidade de preservação ambiental.
Em direção oposta, Bolsonaro planeja “acabar com o ‘ativismo ambiental xiita’ no País”. Acabar com a “indústria de demarcação de terras indígenas“. Tirar o Brasil do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Estas são metas e ações do atual governo. Em julho de 2019, o Presidente declarou: “Questão ambiental só importa aos veganos que comem só vegetais.”.
Bolsonaro não só os despreza nos discursos como age, diariamente, para tornar irrelevantes princípios universais que são incorporados como fundamento da Constituição. É o caso dos ataques à democracia, tão honrada por Ulysses:
“O estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.”
No primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro determinou que houvesse uma celebração pelos 55 anos do golpe militar nos quartéis do país: “31 de março de 1964, devemos, sim, comemorar esta data. Afinal de contas, foi um novo 7 de setembro […] O Brasil merece os valores dos militares de 1964 a 1985” (Redes sociais – 31/03/16). O desejo de celebração do regime ditatorial se soma a participação em atos contra o Congresso e o Supremo e a um amplo histórico de frases reacionárias, reivindicando a ditadura, defendendo seus torturadores e atacando a democracia.
Como se já não tivesse desfigurado o suficiente a Constituição Cidadã, Bolsonaro através da Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, quer inserir oito novos princípios administrativos no caput do art. 37, dentre os quais chama atenção o princípio da subsidiariedade. Na mesma PEC, ao propor a inserção do § 6º ao art. 173 que ordena a exploração da atividade econômica pelo Estado, o governo trata de deixar claro a primazia do “mercado” em detrimento das políticas públicas que afetam diretamente a sociedade brasileira.
O novo dispositivo proposto insere um comando literal que impede a atuação estatal para defesa dos imperativos de segurança nacional e dos relevantes interesses coletivos descritos no caput: “É vedado ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência”.
É o fim da prerrogativa dos governantes de definir políticas públicas que possam afetar, de alguma forma, o mercado. Ou seja, políticas de estímulo ao desenvolvimento de setores e produtos específicos estão vedadas.
O princípio da subsidiariedade ou a subordinação da vontade pública a algo ou a alguém, a prevalência do ajuste fiscal sobre as demandas sociais e o mercado, não mais o Estado, como agente propulsor da sociedade, são os novos conceitos que, somados às mudanças infraconstitucionais, começam a desenhar um novo marco constitucional
A Constituição Cidadã está sob ataque. A negação dos direitos nela consagrados pelas práticas e valores individuais do Presidente afronta o Estado Democrático de Direito fundado com o pacto social de 88. O humanismo, a valorização da democracia, os mecanismos de seguridade social, de proteção ao meio ambiente e combate à miséria estão em cheque. Até quando? O que diria dr. Ulysses?
Obs: em negrito trechos do discurso do Deputado Ulysses Guimarães, no dia 05 de outubro de 1988.