A presidenta eleita Dilma Rousseff, em palestra no Colégio de Advogados da Espanha, em Barcelona, denunciou que Lula está sendo submetido a uma situação de isolamento, para que sinta fragilizado. E apelou por solidariedade internacional para resistir a esta nova etapa do golpe:
— Lula está em Curitiba numa cela, sozinho. Eu tenho experiência disso. E posso dizer que a coisa mais grave que se pode fazer com uma pessoa na prisão é isolá-la, deixá-la sozinha. Nós precisamos de outras pessoas. O Lula está sozinho, talvez porque estejam achando que com isso ele pode ficar frágil. Estão errados. É verdade que o Lula adora pessoas, adora estar com povo. Mas ele é capaz até de falar com as paredes, se precisar – disse Dilma, e acrescentou:
— Nos precisamos de solidariedade, e eu peço isto. Solidariedade para resistir. Nós iremos resistir. E não é só o PT. O Lula é maior que o PT, o Lula não é só o PT. O Lula é maior do que ele mesmo. Representa os movimentos sociais, os trabalhadores do campo e da cidade, representa todos aqueles no Brasil que precisam de governos. Os que precisam de governos são aqueles que foram deixados para trás. Os que estão na frente não precisam de governos. Quase 90% da população brasileira não ganha R$ 4 mil, que equivale a um auxílio moradia [benefício pago aos juízes de direito no Brasil]. E é esta população o centro da resistência no Brasil. É por ela que nós vamos resistir.
LEIA OS PRINCIPAIS TRECHOS DA PALESTRA DE DILMA EM BARCELONA:
Nós atravessamos um momento muito difícil. Nosso continente sofreu muito na década de 70, quando tivemos ditaduras militares dos pampas argentinos até o alto do hemisfério. Superamos isto num processo de redemocratização com muita luta.
Agora sofremos de novo um novo tipo de golpe.Não é golpe militar. É golpe parlamentar, que articula segmentos do judiciário, da mídia, do mercado financeiro. Em toda a AL tem ocorrido isto, como no Paraguai, em Honduras e agora o Brasil.
Não é por acaso que vivemos esta situação. Nas últimas décadas, temos nadado contra a corrente. Reduzimos de forma firme as desigualdades, enquanto o resto do mundo via a desigualdade crescer drasticamente
No nosso continente foi diferente. Governos populares assumiram em vários países e a desigualdade caiu muito.
Temos orgulho de ter tirado da miséria 40 milhões de pessoas nos governos Lula e no meu governo. Este processo estava em curso e foi interrompido pelo golpe. O Brasil neste período saiu do mapa da fome da ONU. Não foram projetos-pilotos. Tudo se media por milhões de pessoas. 56 milhões tiveram acesso à proteção social, milhões tiveram acesso a casa própria. Provamos que era possível crescer e distribuir renda, aumentar o salário mínimo, dar acesso à educação e à universidade.
O golpe tem várias razões. Tem uma razão fundamental: enquadrar o Brasil econômica, social e geopoliticamente. Há um novo processo neoliberal que atravessa o mundo. Definimos América Latina e África como prioridades da nossa política externa. Não se pode desprezar os vizinhos, o mercado regional. Temos que ser uma reunião de nações amigas.
Somos o maior país negro fora da África. A população brasileira é dominantemente negra. Tinhamos uma dívida histórica com a África. Temos consciência da gravidade da escravidão. A abolição no Brasil tem apenas 130 anos. Quando nasci, tinha apenas 59 anos que a escravidão fora abolida no Brasil.
Incomodamos muito por promover o resgate social e o resgate da população negra. Não era o papel que esperavam do Brasil. Mas crescemos e nos afirmamos como uma nação de soft power, sem tradição bélica, sem interesse em qualquer hegemonia.
Isto tudo levou a um crescimento, interrompido inteiramente pelo golpe.
O golpe não é só o impeachment, este é o ato inaugural. O golpe é sempre um processo, que tende a se radicalizar para se manter. É o destino dos golpes.
Os golpes militares tinham muito a ver com a guerra fria. Eram justificados pelo combate ao comunismo. No nosso caso também foi assim, mesmo que João Goulart não tivesse nenhuma relação com o comunismo.
No golpe parlamentar-midiático utilizam-se os instrumentos da democracia para reduzi-la.
Retira-se, assim, uma presidenta que não tem culpa provada, que não sofre nenhuma acusação que não seja administrativa e mesmo assim injustas. Cumprem-se os rituais, e assim mantem-se a aparência com biombos legais.
Por que enquadrar o Brasil? O Brasil tem três grandes bancos públicos e tinha uma forte legislação de proteção do trabalhador. Os golpistas queriam reduzir o estado ao mínimo possível, diminuir o tamanho do Brasil.
Era impossível para os neoliberais ganhar uma eleição para adotar o seu programa. Nós ganhamos quatro eleições consecutivas contra tudo isto. Por isto o golpe. A primerira etapa foi o impeachment ilegal, a segunda etapa foi aplicar um programa que havia sido repelido nas urnas.
E havia um fator conjuntural. O senador Jucá, presidente do maior partido do país, a certa altura, conversa com outro senador, os dois do partido do presidente ilegítimo, e Jucá diz: “o governo não vãi impedir as investigações de corrupção e, antes que chega a nós, vamos fazer um grande acordo, com Supremo e com tudo, para estancar a sangria”.
Embora a série “O Mecanismo”, da Netlflix, ponha esta frase na boca do Lula, todos sabem que quem disse isto foi o presidente do partido golpista. Foi gravado.
No Brasil, adotou-se o lawfare. Fomos julgados e condenados pela mídia. E quando você é julgado pela mídia, não há presunção de inocência, você tem que provar que não é culpado.
Mas o fogo amigo acabou atingindo os golpistas: apareceram malas de dinheiro deles, apartamentos com dinheiro deles escondido, contas no exterior – tudo deles.
No Brasil, o juiz de instrução é o mesmo que julga. Se acusa Lula de corrupção passiva. No Brasil, esta acusação exige ato de ofício e objeto de contrapartida de ato de ofício. O objeto é o apartamento, que não pertence e não é de posse de Lula. Tanto que este mesmo apartamento foi usado pela empresa que o teria dado a Lula como garantia de uma dívida dela. Uma juíza colocou o imóvel em leilão para que esta empresa pagasse sua dívída. Ora, se pertence à empresa e é usado por ela para pagar uma dívida, como afirmar que é de Lula? Além disso, Lula não fez uma lei, um decreto, uma medida administrativa qualquer em benefício desta mesma empresa. A ponto de o juiz dizer que “o ato de ofício e indeterminado”. O processo de impeachment contra mim foi assim.
Decretaram a prisão do Lula por uma razão política. O processo golpista precisa se reproduzir para ser vitórioso. Para os golpistas, a reprodução necessária e importantíssima é vencer a eleição em 2018. Se eles ganharem a eleição, eles farão a reforma da previdência, venderão a Petrobras e outras medidas para as quais não têm apoio agora. Eles precisam ganhar a eleição para avançar e para que o que eles fizeram não seja desmontado.
Mas o resultado político do golpe foi um desastre. A sustentação política foi destruída, seja pela corrupção, já que eles não estancaram a sangria, seja porque a população se dá conta de que está perdendo muito. E hoje os golpistas não têm um candidato. Os possíveis candidatos deles são todos muito fracos. A rejeição deles cresce e a aprovação cai vertiginosamente.
O Lula, a partir de 2017, em todas as pesquisas, mostra crescimento constante. Hoje tem mais do que o dobro do segundo colocado. A situação dos golpistas é dramática. O PT tem hoje 20% de aprovação.
Isto é uma derrota política, mas por outro lado, cria-se uma situação muito grave. Temos, como todos os países, uma Caixa de Pandora. A nossa mostra logo um peso imenso que se abate sobre a população em forma de controle. Não bastava prender o escravo, era preciso puní-lo, agredí-lo, seviciá-lo publicamente. Enquanto não lidarmos claramente com a questão do racismo no Brasil, a população negra jovem e em geral será a maior vítima da nossa Caixa de Pandora.
È visível a existência de um ovo da serpente da extrema-direita, chocado na violência e na intolerância aberta contra a divergência. O golpe produziu e estimulou isto. Os golpistas incentivaram a intolerância, o ódio e a violência, e agora não conseguem colocar tudo isso de volta à caixa. A segunda força política nas pesquisas, por isso, é o senhor Bolsonaro, um deputado federal que quando foi votar o impeachment, votou a favor da tortura, de um torturador e da volta da ditadura militar.
O Brasil precisa se encontrar consigo mesmo. E só há um jeito. Fazer uma eleição em que todos respeitem as regras do jogo. Aceitar o resultado da eleição é cláusula pétrea da democracia. Eu fui reeleita em novembro e, em março, entraram com um pedido de impeachment. O objetivo era impedir o governo de governar. Este processo de boicote foi até o final de 2015.
A prisão do Lula conclui este processo. Querem tirá-lo da disputa. Mas nós não aceitamos Plano B. Nós o consideramos inocente, o consideramos um preso político e vamos desistir dele? Por que iríamos fazer o trabalho para eles?
No meu impeachment, diziam: “tenha um gesto de grandeza, e renuncie”. Nunca aceitei isto. Se você acredita na democracia, só tem um jeito, é ampliar o nível de discussão, acreditar que o processo institucional pode ser retomado, acreditar que o processo eleitoral é a única forma de conduzir o país a uma situação melhor.
A experiência mostra que quando vivemos sob a democracia, nós melhoramos a situação da população, não quando tivemos ditadura.
Quremos Lula não só porque ele pode ganhar, mas também porque ele é capaz de construir pontes. Ele pode lutar para levar o Brasil a se reencontrar. É óbvio que iremos até o fim.
O clima do meu impeachment foi criado com base numa forte misoginia. Eu ouvia muito certas coisas. Ela é dura, os homens são firmes. Uma vez eu disse que sou uma mulher dura cercada de homens meigos. Ela é excessivamente frágil, o homem é sensível. Ela é trabalhadora compulsiva, o homem é empreendedor. Eles não têm compromisso com a lógica, formal ou informal.
A construção dessa lógica, no caso do Lula, é similar. O preconceito é de outro tipo, mas se parece. O Lula era tosco e so poderia decidir dirigido por alguém, eles diziam. Só mudaram de opinião quando o Obama disse que Lula era o cara. Dizem que nós somos atrasados porque nos apoiamos no Nordeste. Pois eu ganhei em Minas, ganhei no Sudeste e eles só ganharam em São Paulo e no Paraná.
O Brasil é um dos únicos três países do mundo que não tributa ganhos e dividendos. Nós não tributamos grandes fortunas. O pato amarelo dos empresários na Avenida Paulista era um aviso de que eles não participariam de nenhum esforço para sair da crise.
Agora, vamos lutar pela libertação do Lula. Somos coerentes com o que pensamos. Muitos queriam que nós resistíssemos dentro do sindicato que é o berço do sindicalismo brasileiro, onde nasceu o PT, em São Bernardo do Campo. Não fizemos isto. Buscamos nossa autonomia e buscamos uma saída digna, mas não queríamos ser motivo para sangue e violência. Queremos atuar na democracia. O PT sempre lutou pela democracia.
Lula está em Curitiba numa cela, sozinho. Eu tenho experiência disso. E posso dizer que a coisa mais grave que se pode fazer com uma pessoa na prisão é isolá-la, deixá-la sozinha. Nós precisamos de outras pessoas. O Lula está sozinho, talvez porque estejam achando que com isso ele pode ficar frágil. Estão errados. É verdade que o Lula adora pessoas, adora estar com povo. Mas ele é capaz até de falar com as paredes, se precisar.
Nos precisamos de solidariedade, e eu peço isto. Solidariedade para resistir. Nós iremos resistir. E não é só o PT. O Lula é maior que o PT, o Lula não é só o PT. O Lula é maior do que ele mesmo. Representa os movimentos sociais, os trabalhadores do campo e da cidade, representa todos aqueles no Brasil que precisam de governos. Os que precisam de governos são aqueles que foram deixados para trás. Os que estão na frente não precisam de governos. Quase 90% da população brasileira não ganha R$ 4 mil, que é o auxílio moradia de um juiz de direito. E é esta população o cenro da resistência no Brasil. É por ela que nós vamos resistir.
Um sinal terrivel do que está acontecendo no Brasil é o assassinato da Marielle. O Rio sempre foi o centro político do Brasil, e o assassinato de uma vereadora neste lugar, uma vereadora que lutou pelo povo da periferia, pela população negra, uma mulher que representa algo importante no Brasil, é algo gravíssimo. A morte dela ocorre em meio à intervenção militar federal no estado, e isto é sintomático. Todos temos de denunciar o assassinato dela ao mundo.
RESPOSTAS A PERGUNTAS DA PLATÉIA
Nós não discutimos Plano B. Quanto a mim, transferi meu título para Minas Gerais. Mas tenho até agosto para definir. Aliás, até agosto é o prazo para o Lula se registrar também.
Agora as pesquisas parece que não vão mais colocar Lula em todos os cenários, porque quando colocam, ele ganha. Sempre que ele foi condenado, a popularidade dele aumentou, porque aumentou a percepção da injustiça.
Eles disseram: “tira o PT e a crise acaba”. Tiraram o PT e a crise se aprofundou. O Brasil sempre se recuperou com investimento público e investimento privado. O investimento privado diminui com a crise. Nossa crise não é bancária, não é de dívida externa, não é de divisas. Nossa crise é política. A instabilidade criada pela derrubada do meu governo assustou investidores. Quem vai investir em situação de instabilidade? Para me tirar, agravaram a situação econômica, radicalizaram os problemas econômicos, criaram grande desemprego. Mas é preciso lembrar que no meu último ano de governo o desemprego era 4,8%. O nosso problema era plano emprego.
Nossa saída é política. Precisamos de um projeto nacional, com base na legitimidade da eleição. Eleições livres e legítimas.
Os civis não precisam de militares para dar golpe. Eu creio que há nas Forças Armadas e em todas as corporações pessoas que acreditam no processo golpista, mas tem também há integrantes das Forças Armadas que não acreditam. Não vejo como possível uma interferência militar, além dessas manifestações que estão ocorrendo. E o decano do STF, ministro Celso de Mello, respondeu muito bem a isto. Deixou claro que não se trata de aceitar uma intervenção e uma volta atrás. As situações que levaram ao golpe miliar implicavam a guerra civil, Isto não existe hoje e não passa pela cabeça do exército brasileiro.
O estado tem enorme poder e quem regula este poder é o Poder Judicário. É fundamental o estado democrático de direito, e isto exige um comportamento rigoroso do Judiciário, sem politização, sem abrir mão da presunção da inocência, sem desrespeitar o devido processo legal. O Brasil vive uma situação em que a Justiça resolve problemas que não dizem respeito a ela, porque são prerrogativa dos outros poderes. É a judicialização da política. Há uma hipertrofia do Judiciário no Brasil, e isto é parte desse processo complexo.
Descobrimos que a nossa democracia não só não era perfeita como não está consolidada. O reforço do estado democrático direito é crucial para nós e isto inclui obrigatoriamente a democracia formal. Temos muito o que fazer pelo povo, criar a democracia de oportunides e de acesso a direitos, mas isto não acontece sem a democracia formal. Para nós, o aspecto democrático é o mais importante agora. Temos que buscar este caminho e entender a sua relevância.
Aumenta a financeirização, aumenta a concentração de renda, um trabalhador branco americano ganha menos que há cinco anos – e é em situações assim que a democracia começa a ser posta em questão. Ressurgem partidos de direita. Isto é sintoma de quebra democrática. Isto aconteceu porque a desigualdade é incompatível com a democracia.
ASSISTA AO VÍDEO DA PALESTRA:
Dilma fala no Colégio de Advogados da Espanha, com sede em Barcelona, sobre as ameaças a democracia no Brasil.
Posted by Dilma Rousseff on Wednesday, April 11, 2018