A crise do Covid-19 é a chance do capitalismo para fazer diferente
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A crise do Covid-19 é a chance do capitalismo para fazer diferente

O Coronavirus irá exigir dos governos respostas em uma escala e intensidade que recordam os conflitos militares – esta é uma guerra contra a disseminação do vírus.

23/03/2020 10:59

*Mariana Mazzucato 

O mundo está em estado crítico. A pandemia do Covid-19 está rapidamente se espalhando nos países, com uma escala e uma severidade jamais vistas desde a devastadora gripe espanhola, em 1918. A não ser que uma ação global coordenada seja tomada para conter a pandemia, o contágio logo se tornará econômico e financeiro.

A magnitude da crise exige que os governos atuem. E eles estão atuando. Os Estados estão injetando estímulo na economia enquanto tentam, desesperadamente, diminuir o avanço da doença, para proteger populações vulneráveis, e ajudar a criar novas terapias e vacinas. A escala e a intensidade dessas intervenções relembram conflitos militares – essa é uma guerra contra a disseminação do vírus e o colapso da economia.

E mesmo assim, há um problema. A intervenção necessária exige uma concepção diferente das que os governos escolheram. Desde os anos 80, os governos ouviram que deveriam recuar e deixar os negócios criarem riqueza, intervindo somente para consertar os problemas quando aparecessem. O resultado é que os governos não estão sempre preparados e equipados para lidar com crises como o Covid-19 ou uma emergência climática. Ao assumir que os governos, antes de agir, devem esperar até que aconteça um grande choque no sistema,   faz com que preparações insuficientes sejam feitas pelo caminho.

No processo, instituições críticas que fornecem serviços públicos e bens públicos amplamente – como a NHS no Reino Unido, que sofreu, desde 2015, com cortes na saúde pública totalizando 1 bilhão de libras– são deixadas enfraquecidas.

O papel proeminente dos negócios na vida pública também levou a uma perda de confiança no que o governo consegue alcançar sozinho – se deixando levar por muitas parcerias público-privadas problemáticas, que priorizam os interesses dos negócios ao invés do bem público. Por exemplo, tem sido bem documentado que parcerias público-privadas em pesquisa e desenvolvimento frequentemente favorecem os “capas de revista” às custas de remédios menos atrativos comercialmente que são altamente importantes para a saúde pública, incluindo antiobióticos e vacinas para muitas doenças com potencial de surto.

Além disso, há uma falta de rede de proteção para os trabalhadores em sociedades com crescente desigualdade, especialmente para os trabalhadores de bicos sem proteção social.

Mas agora temos uma oportunidade para usar essa crise como um meio para entender como fazer o capitalismo diferente. Isso exige que repensemos as funções dos governos: ao invés de simplesmente consertar falhas do mercado quando aparecem, eles deveriam agir ativamente para moldar e criar mercados que forneçam crescimento sustentável e inclusivo. Também deveriam garantir que as parcerias com empresas envolvendo fundos governamentais sejam conduzidas pelo interesse público, não pelo lucro.

Primeiramente, os governos devem investir, e em alguns casos criar, instituições que ajudem a prevenir crises, e que nos tornem mais capazes de lidar com elas quando surgirem. O orçamento emergencial do governo de 12 bilhões de libras para a NHS é uma ação bem-vinda. Mas igualmente importante é o foco em investimentos a longo-prazo para fortalecer sistemas de saúde, revertendo tendências dos anos recentes.

Em segundo lugar, os governos precisam coordenar melhor atividades de pesquisa e desenvolvimento, conduzindo-as em direção aos objetivos da saúde pública. A descoberta de vacinas precisará de uma coordenação internacional em grande escala, exemplificado pelo trabalho extraordinário da Coalizão para Inovações Epidemiológicas (CEPI).

Mas os governos nacionais também têm uma grande responsabilidade em moldar os mercados ao direcionar inovações para resolver metas públicas, da mesma maneira que isso tem sido feito por organizações públicas ambiciosas como a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa) nos EUA, que financiou o que se tornou a internet quando estava resolvendo o problema de satélites de comunicação. Uma iniciativa similar na saúde garantiria que o financiamento público esteje direcionado para resolver grandes problemas sanitários.

Em terceiro lugar, os governos precisam estruturar parcerias público-privadas para garantir que os cidadãos e a economia se beneficiem. A saúde é um setor que recebe globalmente bilhões do bolso público: nos EUA, o Instituto Nacional de Saúde (NIH) investe 40 bilhões de dólares por ano. Desde o surto de Sars em 2002, o NIH gastou 700 milhões de dólares em pesquisas e desenvolvimento do coronavírus. Um maior financiamento público indo para inovação na saúde significa que os governos deveriam governar o processo para garantir que os preços sejam justos, que patentes não sejam abusadas, que o fornecimento de remédio seja garantido e que os lucros sejam voltados à inovação, ao invés de desviados para os acionistas.

E se forem necessários suprimentos emergenciais – como remédios, leitos hospitalares, máscaras ou ventiladores – as mesmas empresas que se beneficiam com os subsídios públicos nos tempos bons não devem especular e cobrar a mais nos tempos ruins. Acesso universal e acessível é essencial não somente em nível nacional, mas em nível internacional. Isso é especialmente crucial para as pandemias: não há lugar para pensamentos nacionalistas, como a tentativa de Donald Trump de possuir uma licença exclusiva da vacina do coronavírus para os EUA.

Em quarto lugar, é finalmente chegada a hora de aprender as duras lições da crise financeira global de 2008. Ao passo que as empresas, de companhias aéreas ao varejo, vêm pedindo por resgates e outros tipos de assistência, é importante resistir e não simplesmente dar dinheiro. Condições podem ser impostas para garantir que os resgates sejam estruturados de forma a transformar os setores que estão sendo salvos para que façam parte de uma nova economia – uma que seja focada em uma estratégia de um novo acordo verde a fim de reduzir as emissões de carbono enquanto investe nos trabalhadores, e garanta que possam se adaptar às novas tecnologias. Isso deve ser feito agora, enquanto os governos têm o poder.

O Covid-19 é um grande evento que expõe a falta de preparação e resiliência de uma economia cada vez mais globalizada e interconectada, e certamente não será o último. Mas podemos usar esse momento para assegurar uma abordagem de todas as partes interessadas (não só dos acionistas) para o centro do capitalismo. Não vamos desperdiçar essa crise.

* Mariana Mazzucato é professora de economia na University College London e autora do Estado Empreendedor

Publicado originalmente em ‘The Guardian‘ | Tradução Silvio Augusto

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