NÃO HÁ JUSTIÇA EM JULGAMENTOS MIDIÁTICOS
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NÃO HÁ JUSTIÇA EM JULGAMENTOS MIDIÁTICOS

“No momento da sentença, não existia mais a presunção de inocência. Fora ela absolutamente destroçada pelos canais de comunicação”.

10/01/2018 12:39

Rômulo Luis Veloso de Carvalho é defensor Público de Minas Gerais, membro da Câmara de Estudos de Direito Criminal e Processual Penal da Defensoria Pública do estado, pós-graduado no curso de especialização em direito lato sensu da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, e graduado em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). No artigo que assina no livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, Rômulo destaca a influência exercida pela imprensa sobre a sentença de primeira instância que condenou o ex-presidente.

— O grande desafio de equilibrar a liberdade de imprensa com o direito a um julgamento justo sempre foi tema sensível e, no presente caso, o que se verificou foi o completo esvaziamento de qualquer possibilidade de se chegar ao final da instrução com obediência aos ditames do devido processo legal. É preciso desmistificar definitivamente o conceito de imprensa como mediadora desinteressada. Sem demonizar sua importância, é necessário perceber que suas pautas e ações se inserem dentro de uma lógica empresarial, permeada pelo subjetivismo dos profissionais envolvidos. Em julho de 2017, momento da sentença, não existia mais a presunção de inocência. Fora ela absolutamente destroçada pelos canais de comunicação e pelas arbitrariedades cometidas no curso da instrução. Não existia ainda imparcialidade mínima por parte do julgador que durante toda a instrução viveu em confronto direto com os defensores dos acusados.

EIS A ÍNTEGRA DO ARTIGO

NADA SOBROU DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. A SENTENÇA É NULA!

Rômulo Luis Veloso de Carvalho

Alguns desafios que a vida apresenta se colocam em patamar de importância superior aos demais. Analisar em poucas laudas trechos da sentença condenatória proferida pelo juízo da décima terceira vara federal de Curitiba em desfavor do ex-presidente Lula certamente é um deles.

A sentença que data de 12 de julho de 2017 é histórica e disso não há mais quem duvide. A condenação daquele que é seguramente um dos maiores líderes populares do planeta por corrupção e lavagem de dinheiro impacta e tumultua o ambiente político nacional, irradiando seus efeitos para muito além da vida particular do sentenciado.

Os atos processuais praticados pelo julgador desse processo, em diversas ocasiões, observaram perfeito compasso com a discussão de temas sensíveis do cenário político nacional, interferindo sempre em desfavor do grupo político que o ex-presidente representa. Foi assim durante o debate do processo de impeachment e na nomeação do ex-presidente para ocupar um ministério.

No momento da sentença, o roteiro foi o mesmo. Para ilustrar cumpre pontuar que a sentença ocorre apenas horas depois da aprovação pelo Senado de uma profunda reforma trabalhista, no dia de início da discussão sobre a autorização pela câmara da investigação do presidente Michel Temer por corrupção passiva e em um cenário de crescimento da liderança popular do ex-presidente nas pesquisas eleitorais para as eleições de 2018.

Ou seja, deixando de lado uma perspectiva ingênua dos acontecimentos, é forçoso reconhecer que dentro do contexto de todo o processo está a relação entre direito penal, política e mídia.

Permanece extremamente fértil o campo de debate acerca da postura exigível dos órgãos de controle e do judiciário em meio a um julgamento penal que monopolize os holofotes de toda a grande imprensa. De toda forma, o processo ainda em curso certamente entrará para o rol de casos obrigatórios em um estudo acurado sobre como não proceder em julgamentos penais midiáticos em que se objetive seguir nos ditames constitucionais.

O grande desafio de equilibrar a liberdade de imprensa com o direito a um julgamento justo sempre foi tema sensível e, no presente caso, o que se verificou foi o completo esvaziamento de qualquer possibilidade de se chegar ao final da instrução com obediência aos ditames do devido processo legal.

É preciso desmistificar definitivamente o conceito de imprensa como mediadora desinteressada. Sem demonizar sua importância, é necessário perceber que suas pautas e ações se inserem dentro de uma lógica empresarial, permeada pelo subjetivismo dos profissionais envolvidos.

Em julho de 2017, momento da sentença, não existia mais a presunção de inocência. Fora ela absolutamente destroçada pelos canais de comunicação e pelas arbitrariedades cometidas no curso da instrução. Não existia ainda imparcialidade mínima por parte do julgador que durante toda a instrução viveu em confronto direto com os defensores dos acusados.

Vale lembrar que capas de revistas ilustraram durante o processo a figura do ex-presidente em oposição a do juiz – este sempre retratado como combatente severo do crime e da impunidade. Pouco tempo antes da sentença, publicações tentaram cravar até mesmo o patamar da condenação, chegando a se publicar que o ex-presidente seria condenado a vinte dois anos de pena.

Enfim, apesar de se tratar de um processo com ações extremamente controversas, como nem mesmo passagens da sentença deixaram de negar (itens 72, 77, 127, 130, 131, etc.), jamais se tratou com seriedade a possibilidade de absolvição do acusado, o que é fato suficiente para macular o julgamento.

No histórico caso americano Shephered v. Florida já existia o alerta amoldável ao presente caso, na ocasião em que negros acusados de estuprarem uma jovem de dezessete anos foram condenados nas duas primeiras instâncias e o caso foi depois anulado pela Suprema Corte. O fundamento de anulação envolveu fundamento de discriminação racial, mas o mais interessante do julgamento sobre o tema é o incômodo do Justice Jackson, para quem “o julgamento fora apenas uma formalidade para registrar o veredicto ditado pela imprensa e a opinião pública por ela gerada”.

É disso que se trata. Desde o início da instrução, mesmo aqueles que nada tinham lido sobre o caso jamais tiveram qualquer dúvida de que a sentença proferida pelo juízo seria condenatória.

Não há nada que sobre da imparcialidade de um magistrado que determine a condução coercitiva de um investigado sem prévia intimação descumprida e termine por arranhar assim a presunção de inocência que deveria vigorar plenamente em favor do acusado durante o processo.

Não há nada que sobre da imparcialidade de um magistrado que levante o sigilo de interceptações telefônicas que tinham a participação da chefe de Estado em exercício com justificativa endereçada a opinião pública em meio a discussão de um processo público de impedimento.

Não há nada que sobre da imparcialidade de um magistrado que durante a instrução se porte como adversário da defesa cerceando sua fala e requerimentos.

Esse é o contexto em que a sentença em comento se insere.

A honestidade argumentativa impõe que se faça desde já um recorte na matéria examinada adiante. Não é possível aprofundar nas questões probatórias sem o conhecimento que é próprio e ao alcance exclusivo do juízo e das partes do processo. Ainda assim, o direito aplicável no caso concreto, especialmente o atinente ao procedimento e a forma de sentenciar, certamente podem e devem ser escrutinados.

Deixando de lado a sobriedade na construção argumentativa que deveria marcar a sentença, o seu texto está repleto de adjetivações pejorativas sempre direcionadas aos defensores.

No item 57, o juízo ao se referir ao exercício do direito da defesa de provocar os tribunais para manifestação sobre eventual parcialidade do julgador qualifica as ações nesse sentido como lamentáveis. Ponto seguinte e sem explicações críveis, o juízo afirma que durante a instrução processual foram adotadas medidas questionáveis como estratégia de defesa.

Depois de gastar laudas tentando justificar decisões anteriores, como a condução coercitiva e o levantamento do sigilo das interceptações telefônicas, no item 143 o juízo voltou a taxar o comportamento do defensor do ex-presidente de inadequado, enaltecendo o episódio de destempero do advogado que representou a Petrobras na assistência de acusação ao atacar o defensor do réu, marcando em negrito as qualidades pessoais do assistente.

No ponto 147, já na folha 32, o menoscabo com os defensores fica mais evidente no tom de benevolência conjugada com ameaça velada que o juízo emprega. Aduz sem explicar que poderia ter tomado providências mais enérgicas contra o que chamou de comportamento inadequado dos defensores durante a instrução. Revela imaginar existir alguma espécie de hierarquia entre as funções durante o processo.

Esse tom de encarnar superioridade ética e a insistência na construção de uma narrativa que objetiva apequenar a defesa se repetirá em outras passagens importantes.

No item 136 o magistrado realiza uma inusitada autocitação, ao trazer para sentença sua fala durante o interrogatório, quando transmitiu ao ex-presidente suposta segurança de que seria julgado com base nas leis e na prova do processo – como se interessassem as palavras e não o agir.

A descrita tentativa de pautar o trabalho dos defensores é um proceder lamentável. Não cumpre ao juízo fazer considerações sobre a qualidade do trabalho de uma ou outra parte, mas responder aos requerimentos por ela formulados fundamentadamente.

Quando se provoca o judiciário ou algum outro órgão público para se manifestar ninguém está interessado em saber a opinião do agente sobre o assunto, naquele momento quem fala é o Estado e a linguagem se impõe sóbria e técnica.

Adiante, em fls. 203, no ponto 793 e seguintes, o magistrado simplesmente abandona a função de sentenciar e analisar a prova dos autos para novamente tecer suas opiniões pessoais, agora acerca das escolhas políticas que deveriam ter sido feitas para bem tratar do assunto corrupção ao longo do mandato do ex-presidente.

Começa fazendo o reconhecimento da liderança do ex-presidente e recordando seu empenho na solidificação de mecanismos de prevenção e controle da corrupção para em seguida (item 795) discorrer sobre o que entende deveriam ter sido as medidas adotadas durante o cumprimento da função política.

O exemplo é que o ex-governante pecou em temas cruciais na opinião do magistrado. Deveria ele ter se empenhado em aprovar no congresso emenda constitucional para permitir a prisão a partir da decisão de segundo grau ou, ainda, em alterar a jurisprudência do Supremo nesse sentido.

Esse comentário teria espaço devido em algum blog, no editorial de algum jornal, em carta de opinião endereçada a imprensa, mas está registrado na sentença condenatória mesmo que em nada toque o tema objeto do debate existente no processo criminal.

Mais grave: o magistrado reclama da falta de interferência do então chefe do executivo no trabalho de outros poderes.

É elementar que os avanços de emendas constitucionais dependem sensivelmente mais da vontade política residente no poder legislativo, inclusive podendo caminhar sem nenhuma participação do executivo. Fora da realidade ainda o revelado desejo de ação junto ao Supremo Tribunal Federal, que é subestimado e taxado de influenciável pelo raciocínio do juiz.

Em uma das audiências que presidiu, ao receber contrariado um requerimento defensivo, o magistrado vaticinou ao defensor: “faça concurso para juiz”.

O curioso é que o descompasso entre a atuação realizada e a função ocupada não ocorria com o trabalho dos defensores. Levar requerimentos ao poder judiciário na defesa de um acusado é justamente o mister de quem defende, já tecer seus desejos sobre a atuação política do acusado no corpo da sentença não parece natural da função judicante.

Ou seja, caso o desejo de participar ativamente da vida política se torne irresistível, deveria o magistrado ouvir aos apelos dos admiradores e candidatar-se. A política sim representa o espaço de debate adequado para as manifestações exaradas.

A vetusta preocupação com os largos poderes interpretativos conferidos aos juízes, a falta de controle adequado dos seus atos e suas consequências deletérias se revelam temas ainda extremamente importantes.

Desde Beccaria, que com clássica posição restritiva do direito dos magistrados inovarem traduziu os receios existentes no pensamento do século XVIII, chegando até a concepção de Hassemer, que defendeu a atividade interpretativa do juiz tendo como ponto de partida o direito positivo, sem autorização para inovar fora do seu texto, busca- se equacionar as linhas em que deve o judiciário atuar.

A preocupação é sensível porque não há contra quem recorrer quando o judiciário se habitua a movimentos políticos amparado no exercício de suas funções. O professor da Universidade de Lisboa António Pedro Barbas Homem ensina que a racionalidade do direito exclui, em regra, a urgência e a precipitação do atuar.

O recorrente uso de adjetivações negativas endereçado ao trabalho da defesa, a permanente busca de respaldo junto aos meios de comunicação dentro dos atos judiciais e o aproveitamento da repercussão que se sabia a sentença teria para opinar sobre a atuação política do ex-presidente revelaram que as preocupações postas pela defesa desde o início tinham fundamento. A tomada de decisões pelo juízo motivada por paixões transitórias e antenadas aos desejos de audiência do processo midiático esvaziaram a legitimidade para sentenciar o ex-presidente. A sentença é, portanto, nula por violar o devido processo legal.

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