JUSTIÇA DE CLASSE, SENTENÇAS FACCIOSAS
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JUSTIÇA DE CLASSE, SENTENÇAS FACCIOSAS

“A agressão ao direito de Lula é uma agressão ao direito de todos e a brutal insegurança que essa condenação carreia, mina o que ainda resta de Estado constitucional”.

18/01/2018 11:48

No livro “Comentários a uma sentença anunciada – o processo Lula”, Yuri Carajelescov, procurador da Assembleia Legislativa de São Paulo, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, analisa a origem e os interesses de classe dos promotores e juízes no Brasil. Ele considera o julgamento de Lula em Curitiba uma profusão de erros e abusos contra os direitos individuais:

— É fato notório que um procurador da República da equipe que conduziu a acusação contra Lula figurou em jornais e revistas com uma camiseta na qual se fazia referência a certa “república de Curitiba”, supostamente presidida pelo agente condutor da condenação. Lendo e relendo a Constituição brasileira não é possível localizar esse enclave autônomo e imune às suas disposições. Todavia, nessa área geográfica idealizada pela moderna inquisição, ocorrem situações peculiares: grampos em escritórios de advocacia, conduções coercitivas cinematográficas contra legem, divulgação ilícita de gravações telefônicas entre uma presidenta da República e um ex- presidente para insuflar manifestações populares, escutas em mictórios de presos, vazamentos seletivos, portanto, criminosos, prisões cautelares sine die usadas para extrair delações, as quais sustentam sem provas adicionais condenações etc.

LEIA ABAIXO A ÍNTEGRA DO ARTIGO:

 

 

 

A JUSTIÇA PRIVATIZADA

Yuri Carajelescov

Nem mesmo o mais pessimista à direita e nem o mais otimista à esquerda poderiam supor resultado diverso do apresentado pela decisão condenatória do ex-presidente Lula. A previsibilidade do produto revela um processo de cartas marcadas, conduzido de trás para adiante, no qual se conhece o resultado antes do cumprimento dos ritos, meras formalidades para se atingir uma finalidade preconcebida. Disso decorre o indisfarçável desprezo do agente condutor do processo pela atuação da defesa do ex- presidente, apenas um estorvo a atravancar e embaraçar o inexorável desfecho, enfim, uma perda de tempo ou um movimento “diversionista”, como não se cansou de registrar.

É fato notório que um procurador da República da equipe que conduziu a acusação contra Lula figurou em jornais e revistas com uma camiseta na qual se fazia referência a certa “república de Curitiba”, supostamente presidida pelo agente condutor da condenação. Lendo e relendo a Constituição brasileira não é possível localizar esse enclave autônomo e imune às suas disposições. Todavia, nessa área geográfica idealizada pela moderna inquisição, ocorrem situações peculiares: grampos em escritórios de advocacia, conduções coercitivas cinematográficas contra legem, divulgação ilícita de gravações telefônicas entre uma presidenta da República e um ex- presidente para insuflar manifestações populares, escutas em mictórios de presos, vazamentos seletivos, portanto, criminosos, prisões cautelares sine die usadas para extrair delações, as quais sustentam sem provas adicionais condenações etc.

Nesse caldo de cultura em que a exceção tornou-se a regra, o agente condutor da condenação, crendo-se o soberano dessa “república”, juiz universal de toda e qualquer causa por ele eleita, produziu o auto-de-fé de Lula no qual ignorou deliberadamente o multissecular princípio in dubio pro reo, de sorte que meros indícios tênues tornaram- se verdades sagradas e teorias lisérgicas da prova foram alçadas à categoria de postulados inquestionáveis. Ninguém está acima da lei e da Constituição, salvo o ex- presidente que está abaixo dela e o próprio agente condutor da condenação, o soberano que decidiu desonerar o órgão acusador do ônus probatório, sob o fundamento de que a criminalidade complexa inibe ou dificulta o seu exercício, depositando toda a sua confiança numa delação premiada. Quid iuris? Do começo ao fim, o longo libelo é adversativo, quase uma peça de contrainformação na qual o subtexto infirma ou invalida o texto. Praticamente para cada argumento apresentado pela defesa com espeque na lei e na jurisprudência, o agente condutor do processo saca da manga da toga alguma excepcionalidade criativa que inviabiliza, segundo a sua missão, a aplicação daquele comando em favor do réu. A título de ilustração, a busca insistente de contradições irrelevantes nos depoimentos prestados por Lula na fase de inquérito e na judicial, meros detalhes que não alteravam o essencial, corresponde às digitais do malfeitor na cena do crime. A partir disso, não se mostra difícil perceber que tudo que a defesa articulasse seria usado em seu desfavor.

Assim, não parece justo com os demais juízes brasileiros e com os que dedicam a vida ao estudo do processo tratar a decisão examinada como sentença criminal, ou seja, como uma legítima manifestação do poder estatal na sua face jurisdicional, no qual se encontra investido um juiz imparcial e garante do estatuto de direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal e demais normativas internacionais às quais o Brasil se obrigou perante a comunidade das nações.

Diante desse sintético diagnóstico da patologia, cumpre referir que este breve articulado buscará desvelar, sem a ambição de esgotar o tema, as relações de poder a partir das quais um juiz de primeira instância, aqui referido como agente condutor da condenação, a despeito da estrutura escalonada de organização do Poder Judiciário com seus recursos e possibilidades de revisão, pôde reunir forças para impor a exceção inerente à supressão seletiva de garantias constitucionais elementares486, arvorando-se, na prática, em juízo (quase) universal e se convertendo em elemento de corrupção da legalidade democrática que deveria preservar.

Em recente artigo publicado na imprensa argentina, do alto de sua autoridade de ex- juiz da Suprema Corte da Argentina e de um dos mais prestigiados juristas do mundo, o professor Raúl Zaffaroni identificou a marcha de um plano Condor de novo tipo no continente alinhavado com o objetivo de, pelas vias judiciais, excluir das contendas eleitorais qualquer dirigente ou líder político que possa representar uma ameaça ao “totalitarismo corporativo”, ou seja, à devoção cega ao ultraliberalismo e ao capitalismo global. De fato, não parece ser razoável tributar ao acaso a similaridade entre o que se passa no Brasil com Lula, na Argentina com Cristina Kirchner, no Peru com Ollanta Humalla, no Paraguai com Lugo e, antes, em Honduras com Zelaya488. Todos eles com contas exigidas pela justiça. Não se trata de apelo a teorias conspiratórias, mas da mera constatação de uma determinada realidade fática. Salvo raras exceções, juízes e procuradores no Brasil são recrutados entre os filhos da elite, dos privilegiados que podem se dar ao luxo de treinar por anos a fio para concursos públicos e pagar cursos de pós-graduação especialmente nos Estados Unidos, onde, além de se apropriarem do cabedal técnico próprio de uma cultura jurídica distinta da sua, reforçam suas crenças em um determinado programa para o mundo. Há, portanto, uma conjunção de quereres por vezes até inconsciente entre os agentes de Estado que retornam aculturados ao país e o mainstream mundial, o que permite àqueles transitar sobre as leis e a Constituição com desenvoltura, construindo uma narrativa apenas formalmente jurídica de modo a justificar em patamares aparentemente neutros as suas preferências ideológicas.

Esse alinhamento a partir de uma “proposta de ação prática” comum não exclui, antes favorece o estabelecimento de uma aliança estratégica entre esses agentes do Estado e as corporações, especialmente as corporações midiáticas que, no Brasil, são dominadas por oligarquias familiares e cujo escopo primordial é a manutenção da estrutura dos processos de acumulação capitalista por meio da divisão social do trabalho. Isso lhes permite atravessar as turbulências à margem do que até então se entendia por jurídico.

Não deixa de ser peculiar que o agente da condenação tenha pontuado o seguinte em sua decisão (item 133): “Em ambiente de liberdade de expressão, cabe à imprensa noticiar livremente os fatos. O sucessivo noticiário negativo em relação a determinados políticos, não somente em relação ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, parece, em regra, ser mais o reflexo do cumprimento pela imprensa do seu dever de noticiar os fatos do que alguma espécie de perseguição política a quem quer que seja. Não há qualquer dúvida de que deve-se tirar a política das páginas policiais, mas isso se resolve tirando o crime da política e não a liberdade da imprensa.” Evidentemente que há muito mais do que isso nessa relação de cumplicidade. Mais uma vez o agente apela para a estratégia da contrainformação, afirmando o que nega nas entrelinhas. Registre-se que o próprio agente condutor da condenação defendeu em artigo doutrinário sobre a operação “mãos limpas” (mani pulite) que a imprensa deveria ser politicamente instrumentalizada pela justiça para atingir seus objetivos persecutórios, sem o qual seria impossível combater a criminalidade organizada, sugerindo muito mais do que uma relação republicana e impessoal entre ambos.

Não é tarefa simples dizer quem instrumentaliza e quem é instrumentalizado. No fundo, há uma relação sinalagmática entre os agentes do Estado e as corporações de mídia. De um lado, julgadores são alçados à categoria de semideuses pela mídia, o que importa também em blindagem em relação aos demais órgãos da estrutura judicial, e, de outro, concedem a esta o poder de decisão final real. Nessas situações, os julgamentos ocorrem na e pela mídia. Não é por acaso a recorrente menção às reportagens de O Globo como elemento de “convencimento” da culpabilidade de Lula: mídia e julgador se retroalimentam em uma relação circular em que a “verdade” de um valida a do outro e vice-versa. A sentença torna-se uma mera formalidade, desde que chancele a narrativa previamente apresentada à audiência. Por isso, preceitos civilizatórios constitucionalizados, como a liberdade como regra e a prisão como exceção, a presunção de inocência, a ampla defesa, o contraditório, quando não são tratados como meros entraves à solução já anunciada, são “flexibilizados”, convertendo-se em formalidades onerosas ao processo, a serem cumpridas apenas na aparência, sem qualquer consequência prática em relação ao veredito. Assim, substitui-se a “plácida obscuridade dos processos judiciais” pela “trepidante ribalta dos dramas judiciais”. Juízes despojam-se de seu munus de trava à turba, limite às maiorias de momento e operam, como afirma Habermas, como incorporadores de interesses privados à esfera pública, ainda que se suponham realizando o interesse público, de sorte que se convertem em autômatos de discursos preestabelecidos que se conformam às expectativas de determinados interesses sociais, políticos e econômicos. De fato, não se trata mais de simples casos de publicidade opressiva prejudicial à defesa493, por si só censurável, mas de uma peculiar privatização ad hoc da função jurisdicional, uma das expressões da soberania estatal, ou de uma imanente delegação do exercício (i)legítimo da força coercitiva do Estado.

Essa justiça de fancaria atrelada a interesses e a critérios estranhos ao Direito incompatibiliza-se com o estatuto constitucional de garantias, ainda que finja aplicá-lo para uma plateia cada vez mais desconfiada. Impossível, nesse quadro, se falar em juízes independentes ou a acusados submetidos a um tribunal sem preconceitos (imparcial), algo inerente ao fair trail. Por isso, a agressão ao direito do ex-presidente Lula é uma agressão ao direito de todos e a brutal insegurança que essa condenação carreia, alicerçada em meras suposições preconcebidas, está a minar o que ainda resta de Estado constitucional no Brasil.

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